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Cem dias de governo: para analistas, início da gestão Milei é marcado por afastamento do Sul Global

© AP Photo / Jose Luis MaganaJavier Milei em discurso durante a Conferência de Ação Política Conservadora, no National Harbor, em Oxon Hill, Maryland. EUA, 24 de fevereiro de 2024
Javier Milei em discurso durante a Conferência de Ação Política Conservadora, no National Harbor, em Oxon Hill, Maryland. EUA, 24 de fevereiro de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 19.03.2024
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Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas apontam que o presidente argentino não arrefeceu sua retórica radical nos poucos mais de três meses no cargo e distanciou a Argentina de atores importantes para a economia do país, como Brasil, China e Rússia.
O governo do presidente argentino, Javier Milei, completou 100 dias nesta segunda-feira (19).
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas fazem uma análise de quais promessas feitas ao longo da controversa campanha de Milei à Casa Rosada foram colocadas em prática, em quais pontos ele foi obrigado a retroceder, como está o índice de pobreza e inflação na Argentina, bem como a relação com o Brasil e a China, alvos de ataques do presidente argentino.
Professor de direito internacional e diplomata, Paulo Portela afirma que a Argentina é "um país complementar em muitos aspectos ao Brasil".
"Brasil e Argentina têm histórias muito relacionadas. Eu sempre digo que a Argentina é como se fosse um novo estado de São Paulo a mais na economia brasileira, tem o PIB [produto interno bruto] similar, uma população similar. Em suma, é um país com o qual nós devemos sempre estabelecer regras de convivência. É um país que vai ser sempre importante para nós e é sempre importante que a gente saiba o que está acontecendo na Argentina, sabendo, porém, que entender a Argentina passa pela palavra 'instabilidade'", explica Portela.
Ele destaca que a Argentina "é um país que se caracteriza muito pela instabilidade política, econômica, por momentos de grande prosperidade, momentos de grandes crises, momentos em que se tem presidentes que completam seus mandatos e momentos em que, em pouco tempo, há vários presidentes".
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"É um país que deve ser entendido assim, por ser um país instável, mas nunca um país a desprezar. A Argentina ainda tem bons indicadores sociais, ainda é um grande mercado para os produtos brasileiros, está presente na nossa economia. Os argentinos e argentinas estão presentes no Brasil inteiro, muitas vezes numa pequena praia, investindo numa pousada, num hotel, mas gerando emprego e renda aqui também."

Como avaliar os 100 dias de governo Milei?

Portela diz que o governo Milei "surge de um desastre econômico" que, em sua avaliação, foi o governo de seu antecessor no cargo, Alberto Fernández.
"Eu sempre digo que o governo de Alberto Fernández abusou do direito de errar e dessa insatisfação surge Javier Milei, surge um presidente com uma linguagem, digamos, lacradora, ou seja, às vezes trazendo afirmações rompantes, afirmações fortes, sem aparentar ser aquela pessoa que vai estar muito disponível ao diálogo."
Ele afirma que o primeiro impacto da ascensão de Milei sentido nesses 100 dias de governo foi o agravamento da luta pela sobrevivência, uma vez que o Estado, que era um grande empregador, promoveu uma onda de demissões.
"Então as pessoas aumentam sua preocupação sobre como vão se sustentar, alguns programas de subsídios são cortados e, com isso, as passagens do transporte público sobem, preços de combustível sobem, os preços de alimentos também sofrem, então gera uma tensão. Como sobreviver? E a luta pela sobrevivência na Argentina, portanto, nesse sentido, tem se acirrado. Por outro lado, porém, confesso que eu esperava maior instabilidade política nesse primeiro momento", explica Portela.
Por sua vez, Matheus Oliveira, professor de relações internacionais no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, diz que um dos pontos que chamou atenção nesses primeiros 100 dias de governo de Milei é o fato de a retórica do presidente argentino não ter se alterado.

"As expectativas de moderação que existiam em relação a Milei têm sido diariamente derrotadas. Milei não alterou de modo significativo nem o seu estilo nem a sua agenda, as suas convicções. Nesse sentido, eu acho que o grande saldo que fica desses 100 dias é que eles são relativamente previsíveis. Eles transcorreram mais ou menos de acordo com aquilo que a gente esperava, com bastante embate, bastante conflito, bastante polêmica."

Ele aponta que a tramitação de seu pacote de propostas, conhecido como "Lei Ómnibus", no Congresso argentino também foi bastante tumultuada, e apesar de não ter sido totalmente rechaçado, tendo alguns pontos sido aprovados, foi considerado uma derrota por Milei, que buscava o "tudo ou nada".
"Ao mesmo tempo, essas derrotas são ativos importantes para ele junto aos setores da sociedade que o apoiam com mais fervor, porque essas derrotas reforçam esse apelo que ele tenta construir para a sociedade de que ele é um político contra a casta, de que ele é um político antissistema e que o que está acontecendo, na verdade, é uma reação do sistema, que é podre, que é corrupto, contra ele, que supostamente é o salvador da pátria", afirma o especialista.

"Então acho que é importante fazer essa distinção. Objetivamente falando, ele acumulou muito mais perdas e muito mais derrotas do que vitórias. Mas ele tem tentado transformar essas derrotas em capital político para alguns grupos que são seus apoiadores mais enérgicos", complementa.

Como está a fome na Argentina?

Em fevereiro, a inflação na Argentina desacelerou para 13%, abaixo dos 20% registrados em janeiro, mas no acumulado dos últimos 12 meses aumentou 276%, a maior taxa de inflação do país dos últimos tempos. Um dos reflexos dessa alta inflacionária é a fome, e para tentar solucionar o problema, Milei liberou a importação de vários itens da cesta básica.
Questionado sobre o que Milei poderia fazer para melhorar a qualidade de vida do povo argentino, Portela afirma que isso ainda "é um grande desafio" e destaca que já há algumas iniciativas voltadas para o social, como um recém-implementado desconto no preço da carne.

"Esses programas sociais serão necessários, porque não será feito um ajuste de uma vez como ele pretende, por melhores que sejam as intenções dele de modernizar a Argentina, tornar a economia mais racional, como ele fala, e equilibrar os gastos. Isso não vai acontecer da noite para o dia."

Segundo Portela, se Milei não equilibrar as mudanças que propõe na área econômica com programas sociais, corre o risco de não conseguir terminar seu mandato.
"A gente sabe que a história da Argentina é uma história cheia de idas e vindas de governos, cheia de governos que não terminaram [seus mandatos], então para que ele realize os planos que tem de transformar a Argentina, ele vai ter de equilibrar, pelo menos no primeiro momento, com alguns programas sociais, como esse da facilitação da importação de alimentos. Sem isso ele não vai conseguir chegar ao fim."
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Já Oliveira diz que 100 dias são poucos para que haja alguma mudança concreta na economia, mas aponta que a situação do país continuou a se agravar nos poucos mais de três meses de mandato de Milei.

"Acho que há umas duas semanas, viralizou muito um vídeo que mostrava as pessoas pulando as catracas nas estações de trem de Buenos Aires porque o preço da passagem disparou e as pessoas não conseguem mais pagar o preço da passagem. O fim de muitos restaurantes populares tem uma consequência também desastrosa sobre a população mais pobre do país, a população que precisa de fato de mais ajuda, de mais amparo do governo."

Oliveira diz considerar que esse agravamento está desenhando uma situação que, em algum momento, será difícil de ser contida por Milei, mesmo diante das restrições impostas às manifestações.
"Até agora, o governo reagiu aos esforços de manifestação que a gente observou nesses três meses com repressão, com violência, da forma como se esperava. Mas eu não sei o que dá para fazer em um contexto em que essas reações populares escalem para além dos limites do que dá para ser reprimido. Então não acho que ele deva manter essa popularidade por muito tempo não. Eu acho que a tendência é que ela comece a derreter e que isso não demore muito."

Como fica a relação com Brasil e China após os ataques de Milei?

Ao longo de sua campanha, Milei disse repetidas vezes que, se eleito, não negociaria com o Brasil e a China. Questionado se houve algum recuo na posição de Milei após eleito, Oliveira diz que a relação com o Brasil na gestão de Milei será politicamente fria.

"Ela deve permanecer um pouco difícil, fria e distante. Ele ofendeu mais de uma vez o presidente Lula. E goste ou não goste de Lula, ele é o chefe de Estado brasileiro, encarregado de conduzir a política externa do Brasil. Então não é de bom alvitre que você ofenda o presidente. Acho até que houve certa abertura, uma disposição do governo brasileiro em dar ao Milei um tempinho para ele descer do palanque e assumir uma postura mais razoável. Ele não aproveitou essa oportunidade e as relações continuam difíceis, e não me parece que melhorem muito facilmente num futuro próximo", argumenta Oliveira.

"Claro que as relações entre o Brasil e a Argentina são maiores e mais profundas do que a agenda dos dois governos. Elas têm uma dinâmica própria. Acredito que essa dinâmica deve, talvez com um pouco mais de dificuldade do que seria em outros momentos, se conservar. Como aconteceu no caso do governo Bolsonaro e Fernández, em que as relações entre os governos eram péssimas, mas o conjunto das relações do âmbito da sociedade, da economia seguiu razoavelmente bem", complementa.
O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, o ministro chinês do Comércio, Wang Wentao, e a presidente do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, Dilma Rousseff, na 15ª Cúpula do BRICS. Joanesburgo, 22 de agosto de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 15.01.2024
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Segundo o especialista, o mesmo deve ocorrer com as relações da Argentina com a China, porém em menor escala, já que a dependência econômica é maior.
Portela aponta que os ataques de Milei contra a China durante a campanha presidencial tiveram um impacto muito negativo para a Argentina.
"A China é um grande investidor no mundo inteiro. A China tem uma presença muito interessante na América Latina, na América do Sul. O grande exemplo hoje é o megaporto de Chancay [financiado pela China], no Peru, e isso mostra como a China pode mudar a paisagem do continente. […] isso mostra o poderio econômico da China, e como a China tem aberto possibilidades. Então perder esse apoio neste momento é muito ruim para a Argentina. […] De qualquer maneira, não acredito que isso dure muito tempo. A China também é um país muito pragmático em matéria econômica e, mais cedo ou mais tarde, ela vai voltar a olhar para a Argentina, porque senão perde espaço."

Decisão de não fazer parte do BRICS foi a aposta certa?

Ao assumir a presidência, Milei anunciou que a Argentina não vai fazer parte do BRICS, retrocedendo as negociações do governo anterior para a entrada no bloco, que contaram com grande apoio e esforços do Brasil.
Para Portela, a decisão de Milei "não foi uma boa ideia", pois retirou da Argentina a chance de se aproximar da Rússia.

"A Rússia neste momento está envolvida em um conflito com a Ucrânia. É um momento em que a economia russa se internacionaliza de uma maneira menos intensa. Mas, quando o conflito terminar, e isso vai acontecer, e a economia da Rússia voltar ao seu nível normal de internacionalização, vai ser muito bom já ter uma janela de contato com a Rússia. Você vai chegar na frente. O Brasil, por exemplo, que está no BRICS, já está ali com aquele canal de negociação com a Rússia, com aquele canal de conversa com a Rússia, que vai ser muito útil quando a situação entre a Rússia e a Ucrânia se normalizar."

Ademais, ele afirma que o grupo também inclui a Índia, que hoje tem um forte papel na economia mundial.
"A Índia está começando a colocar as mangas de fora. A economia indiana está começando a se internacionalizar. O BRICS está num momento interessante de crescimento. Outros países vão entrar e são todos países que têm economias médias, são países que não podem ser desprezados", explica. "Então, eu, no lugar da Argentina, não teria me afastado do BRICS."
Oliveira também considera uma má decisão a Argentina não fazer parte do BRICS. Segundo ele, embora ainda seja cedo para medir as consequências, no médio e longo prazo, a ausência da Argentina no grupo terá efeitos negativos concretos.

"Nesse momento tem só três meses de governo. É muito difícil visualizar consequências muito concretas dessa ausência da Argentina no BRICS. Agora, no médio e longo prazo, eu acredito que sim. Se não fosse esse o caso, não tinha mais gente querendo entrar no BRICS e, ao mesmo tempo, era uma forma importante, interessante de expandir, de manter boas relações, de ter um papel atuante, propositivo, numa coalizão de países em desenvolvimento, países do Sul Global", afirma o especialista.

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