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Mundioka
O podcast que fala sobre as raízes do que acontece no mundo. De segunda a sexta, Melina Saad e Marcelo Castilho entrevistam especialistas e personalidades para debaterem assuntos de proporção internacional sob diferentes perspectivas.

'Françafrique': saída do embaixador gaulês do Níger indica esgotamento e fim de era do país europeu

© AP Photo / Sam MednickNigerinos protestam pela saída da França do país. No cartaz, lê-se "Abaixo a França, viva [Vladimir] Putin [presidente da Rússia]". Níger, 30 de julho de 2023
Nigerinos protestam pela saída da França do país. No cartaz, lê-se Abaixo a França, viva [Vladimir] Putin [presidente da Rússia]. Níger, 30 de julho de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 20.10.2023
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A saída da França do Níger, do Mali e de Burkina Faso, com a instalação de governos militares, representa um ponto de inflexão nas relações entre esses países e sua antiga metrópole.
Os recentes levantes militares nesses países demonstram a vontade de romper com décadas de influência do colonialismo gaulês — não apenas na língua e cultura, mas também na economia e política.
Durante entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Alexandre dos Santos, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), explica o significado histórico da retirada da França do Níger e seu impacto em toda a região da África Ocidental.
O especialista destacou que muitos desses países, após conquistarem a independência, mantiveram profundas relações de dependência com a França, formando o que é conhecido como "Françafrique".
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Há uma disparidade nos preços do urânio exportado do Níger para a França, em comparação com o que é vendido para o Canadá, por exemplo. De acordo com o especialista, as empresas francesas controlam a extração de urânio no Níger e têm participação significativa nessas operações. Além disso, os acordos prévios com os governos permitiam a venda do urânio a preços bem abaixo do valor de mercado.

"O Níger tem um peso muito grande na exportação, e as empresas que fazem a extração do urânio são controladas por empresas francesas. Você tem três empresas no Níger e, dentre as três, mais de 50% da participação societária são de empresas francesas. Nos acordos firmados pelos governos anteriores com essas empresas e com o governo da França, eles venderiam abaixo do preço de mercado. Não é mais possível que o urânio extraído do Níger não se reverta em uma riqueza condizente, que é o valor no mercado internacional. Então esses freios de arrumação, por exemplo, são os que estão sendo feitos por esses países", explica o professor.

Essa medida visa garantir que a riqueza gerada pela extração de urânio se traduza em benefícios significativos para a nação nigerina.
No Mali, após o golpe de 2021, o tenente Assimi Goïta vem implementando reformas semelhantes, incluindo a expulsão dos soldados franceses do país.
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Essas ações marcam uma mudança importante nas dinâmicas econômicas e políticas da região, à medida que os países se esforçam para garantir maior equidade nas relações com nações estrangeiras, especialmente a França.
"Uma das primeiras coisas que esse freio de arrumação que esses países fizeram […] foi que todos eles expulsaram as tropas francesas. Os embaixadores franceses se uniram com a França. O Mali, […] de maneira muito mais radical, […] inclusive suspendeu o uso do francês nas escolas e está revendo os currículos escolares, assim como Burkina Faso também está fazendo, e o Níger está nesse mesmo caminho", detalha o especialista.

Sentimento de revolta

Um ponto fundamental dos levantes na África atual é esse sentimento contra a França.
Rafaela Serpa, doutoranda em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora assistente do Centro Brasileiro de Estudos Africanos (Cebrafrica) e professora do curso de especialização em relações internacionais, geopolítica e defesa da mesma universidade explica que essa movimentação é uma continuação do que ocorreu em 1960.

''Essa relação, que foi cortada na década de 60, […] não foi totalmente cortada. Então, de certa forma, eles estão agora tentando um novo afastamento. E isso acontece também porque há uma mudança no cenário mundial. Eu acho que é muito importante observar que estamos migrando para uma ordem mundial multipolar, e que esse tipo de relação de dominação, […] consolidada por muito tempo, mas muito ligada à própria imposição cultural, não vai ser mais aceita porque ela não vem trazendo [nenhum] tipo de benefício", explica a especialista.

Rafaela Serpa destacou a complexidade da situação no Níger, ressaltando que, apesar de ter mantido relativa estabilidade política e eleições regulares, o país figura entre os três mais pobres do mundo, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
A relação de dependência com a França, embora tenha fornecido alguma estabilidade, gerou ressentimento entre a população nigerina.
A percepção de que o país permanece como o mais pobre da região enquanto mantém laços estreitos com a antiga potência colonial tem levado a sentimentos anticoloniais e anti-Ocidente.
Esse ressentimento não se limita à França, mas também se estende aos Estados Unidos, que têm cooperado com a França na região em questões militares, incluindo a luta contra o terrorismo. No entanto, apesar da presença ocidental e dos acordos militares, os países da região continuam a enfrentar uma crise, sem conseguir alcançar uma vitória significativa contra o terrorismo.
"A gente percebe que outros eixos de poder estão surgindo, e isso faz com que esses países tenham alguma margem de manobra para, enfim, buscar outras formas de desenvolvimento, outras alianças, sem que operações unilaterais sejam realizadas. […] [Apesar disso, o que aconteceu na Líbia inspira cuidados:] por causa da operação […] [ocorrida no país] em 2012, muito desse problema do terrorismo na região do Sahel […] se espalhou — […] armas do Exército líbio [acabaram indo] para diversos grupos […], aumentando, enfim, o terrorismo", exemplifica Serpa.

Como nasceu o termo 'Françafrique'

Em 1945, as potências coloniais europeias dominavam mais de um terço da população global.
A França, por si só, governava uma população de mais de 100 milhões de africanos em um território que ultrapassava 11 milhões de km2. A presença francesa se estendia desde Argel até Antananarivo.
O termo "Françafrique" foi criado por François-Xavier Verschave para descrever dois momentos-chave do neocolonialismo francês: o período da "União Francesa", de 1946 a 1958, e a "Comunidade Francesa", criada em 1958 e concluída em 1995. Durante esses 50 anos, ocorreram episódios trágicos, guerras de libertação, assassinatos políticos, terrorismo e o estabelecimento do neocolonialismo através da moeda franco CFA, uma realização financeira de Jacques Foccart, também conhecido como "Monsieur Afrique" (Senhor África, em tradução livre).
O general Charles de Gaulle e seus sucessores utilizaram todos os recursos disponíveis para manter a dominação da França sobre as antigas e novas potências interessadas no continente africano.
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O surgimento da "Françafrique" se deve ao emprego da estratégia de "dividir para conquistar" da antiga política romana pela França, explorando rivalidades tribais, étnicas e religiosas dentro de nações criadas artificialmente pelos colonizadores. A corrupção e a francofonia desempenharam papéis fundamentais para unir povos, independentemente de raças — à semelhança do pan-africanismo, com sua política emancipatória.
François-Xavier Verschave, notório por suas opiniões sobre as relações franco-africanas, denunciou a política externa da França na África, representada pelo conceito de "Françafrique", título de um de seus livros. Ele também liderou a associação Survie de 1995 a 2005, descrevendo-a como uma rede de atores econômicos, políticos e militares na França e na África, focados na exploração de matérias-primas e ajuda pública ao desenvolvimento.
Há diversos eventos trágicos promovidos pela França nos últimos anos, como assassinatos políticos, operações militares e guerras civis, todos com o propósito de impedir o renascimento dos povos africanos. O exemplo mais marcante é o franco da Comunidade Financeira Africana (CFA), uma moeda controlada por Paris que liga o destino de 14 economias africanas ao Tesouro francês.
De forma curiosa, originalmente em 1945, CFA significava "Colônias Francesas da África" e, mais tarde, tornou-se "Comunidade Financeira Francesa". Embora os nomes tenham mudado, o privilégio esmagador que a França construiu na África permaneceu — uma das características da exploração colonialista europeia.
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