- Sputnik Brasil, 1920
Panorama internacional
Notícias sobre eventos de todo o mundo. Siga informado sobre tudo o que se passa em diferentes regiões do planeta.

Carta a Lula prova que Milei sabe que se afastar do Brasil seria 'um tiro no pé', aponta cientista

© AP Photo / Natacha PisarenkoJavier Milei após um discurso no Conselho das Américas, em Buenos Aires. Argentina, 24 de agosto de 2023
Javier Milei após um discurso no Conselho das Américas, em Buenos Aires. Argentina, 24 de agosto de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 30.11.2023
Nos siga no
Especiais
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que, após difamar o presidente brasileiro em campanha, Javier Milei vive um choque de realidade e admite que se afastar do Brasil seria pior para a Argentina.
É celebrado nesta quinta-feira (30) o Dia da Amizade Brasil-Argentina. A data remete a um encontro entre os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín, em 1985, em Foz do Iguaçu (PR), quando ambos assinaram a Declaração do Iguaçu, tratado que lançou as bases para a integração econômica entre os dois países e é considerado o primeiro passo para a criação do Mercosul e a integração regional sul-americana.
Hoje, quase 40 anos após o encontro, o projeto de integração regional é colocado em xeque pelo presidente eleito argentino Javier Milei, ultraliberal que tem entre suas pautas afastar a Argentina de organismos internacionais. Ele proferiu ataques contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em campanha e convidou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), adversário político de Lula nas eleições do ano passado, para a sua cerimônia de posse, marcada para 10 de dezembro.
Posteriormente, Milei mudou o tom e enviou a Lula uma carta convidando o presidente para a posse. Ainda não há indício de que o chefe de Estado brasileiro vai atender ao convite, embora tenha reconhecido a importância da cooperação com o país vizinho.

Qual é a relação entre Brasil e Argentina?

Para entender como fica a relação entre os países, após os embaraços diplomáticos criados pela postura de Milei, e como a ascensão do ultraliberal pode impactar na atuação do Mercosul, a Sputnik Brasil conversou com Fabio Andrade, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), e Jefferson Nascimento, cientista político e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), membro do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) e do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL).
Fabio Andrade afirma que a mudança de tom de Milei reflete um choque de realidade, que ele afirma ser benéfico, em especial para a Argentina.

"É muito positivo ver que esses personagens, esses atores políticos, estão tendo a consciência de que uma coisa é o discurso para atrair o eleitor, outra é a operação da máquina pública. Eu tenderia a dizer que houve um choque de realidade, porque basicamente o Brasil é o destino de 15% das exportações da Argentina. Não se arruma 15%, não se reorienta a economia, no sentido de vendas externas de exportação da noite para o dia."

'BRICS, Afuera!': como a vitória de Milei pode influenciar o peso do Brasil no grupo? - Sputnik Brasil, 1920, 28.11.2023
Panorama internacional
'BRICS, Afuera!': como a vitória de Milei pode influenciar o peso do Brasil no grupo?
Ele acrescenta que agentes políticos sabiam que, se o discurso de campanha de Milei fosse levado a sério, "geraria impactos econômicos ruins para o Brasil, mas muito piores para a Argentina".
Sobre a decisão de convidar Bolsonaro para a cerimônia de posse, Andrade afirma que tem como base um estreitamento de laços de dois políticos com ideias em comum.
O professor de relações internacionais diz que Milei e Bolsonaro integram a gama de políticos que conquistaram espaço na política, "em virtude de problemas cada vez mais complexos de serem atendidos". Ele ressalta que em democracias há espaço para a insatisfação ou grupos de pessoas que não se sentem atendidas pelo sistema.

"Então, [essas pessoas] vislumbram, na possibilidade de mudanças de instituições ou da classe política, uma melhoria da democracia. É o discurso antissistêmico, relacionado a se apresentar como verdadeiros portadores dos anseios populares contra classes que querem operar política apenas e, tão somente, para manter seus privilégios. Tanto Milei quanto Bolsonaro operam nessa chave. Então eu diria que a primeira aproximação é ideológica."

Ele acrescenta que essa aproximação também aponta "a inegável existência de articulação e comunicação entre grupos de extrema-direita". "O que a gente pode dizer é que, nesse momento da quadra histórica, [a extrema-direita] é um movimento mais organizado e de melhor comunicação do que os grupos de esquerda. Então há não só uma base ideológica em comum, mas um movimento organizado."
A opinião de Andrade é compartilhada por Jefferson Nascimento. Em entrevista à Sputnik Brasil, ele afirma que a extrema-direita, de fato, aparenta se articular de maneira internacional, e que Milei e Bolsonaro seriam parte dessa tendência, embora haja algumas diferenças.

"Tanto Bolsonaro quanto Milei têm essa afinidade ideológica com os EUA e Israel. É importante lembrar que quando [Joe] Biden foi eleito [presidente dos EUA], Bolsonaro freou um pouco o discurso pró-EUA, já que aparentemente o vínculo dele era maior com [Donald] Trump, com aquela liderança em especial. Mas me parece que os líderes da extrema-direita se articulam mais nesse formato de um fortalecer o outro."

Brasil e Argentina: soluções mágicas para problemas complexos

Jefferson Nascimento destaca que uma das fórmulas usadas pela extrema-direita para ganhar espaço é propor soluções mágicas para problemas complexos, galvanizando a insatisfação popular e convertendo em apoio eleitoral. Nesse contexto, o desmantelamento de instituições e ritos democráticos se torna uma bandeira.

"Existe uma estratégia da extrema-direita de propor um discurso radical de desmantelamento das instituições e de uma série de procedimentos e ritos como forma de soluções mágicas para problemas complexos e, muitas vezes, não se diz o que vai se colocar no lugar."

Javier Milei deve abrandar caráter antissistêmico se for eleito - Sputnik Brasil, 1920, 24.11.2023
Panorama internacional
Argentina: gabinete de Milei diz que 'fechamento do Banco Central não é uma questão negociável'
Ele acrescenta que, no caso de Milei, as soluções mágicas consistem em "acabar com os ministérios, com o Banco Central, dolarizar a economia e cortar relações com os países ditos comunistas, incluindo, nesse caso, o Brasil".
"Mas era de se esperar que, no caso da relação com o Brasil e com a China, seria um tiro no pé, um suicídio a Argentina cortar relações, justamente porque são seus principais parceiros comerciais. Em um cenário de crise, como você vai cortar a relação com os principais parceiros comerciais? Ou seja, era algo que já era esperado que, em algum momento, ele iria voltar atrás em relação a isso."
Fabio Andrade, por sua vez, afirma ser pouco provável que a Argentina se afaste da China e chama atenção para o estreitamento de laços observado entre os países nos últimos anos.

"Houve uma aproximação da Argentina com a China no sentido de a Argentina fazer parte da [nova] Rota da Seda, que coloca o país como destino de investimento chinês de diferentes tipos e modalidades, mas sobretudo em infraestrutura. As instituições financeiras argentinas começaram a fazer parte do CIPs, que seria o swift chinês, e isso trouxe como fruto direto parte das negociações da Argentina serem remuneradas em renminbi."

Ele acrescenta que é pouco crível que Milei distancie a Argentina da China, pois terá que encontrar outro parceiro econômico para suprir o percentual de 8%, que hoje representa as exportações argentinas ao país.
"Dependeria de ele [Milei] achar outros destinos que absorvessem esses 8%. 'Ah, ele falou que vai aprofundar as relações com EUA e Israel.' Agora, é necessário ver: faz parte das métricas e dos interesses do governo norte-americano aprofundar as relações com a Argentina? Me parece pouco crível."
Carlos Menem e Zulema Yoma, sua esposa à época, acenam da sacada da Casa Rosada no dia da posse de Menem como presidente da Argentina. Buenos Aires, 8 de julho de 1989 (foto de arquivo) - Sputnik Brasil, 1920, 22.11.2023
Panorama internacional
De Menem a Milei: analistas apontam que novo governo argentino pode repetir medidas que fracassaram
Ele afirma que não seria razoável nem republicano colocar a ideologia à frente dos dados econômicos, e destaca que as exportações da Argentina para o Brasil e a China representam 23% da economia do país.

"Como é que você vira e fala [para a população]: 'Olha, rompemos relações comerciais com esse parceiro porque eles não compartilham da mesma ideia que a gente'? Você está penalizando a totalidade da população argentina. Não faz sentido, não é democrático, razoável nem republicano […]. A ideologia é um conjunto de ideias, que pode ser positiva ou negativa. A priori, a gente não tem como fazer qualquer avaliação sobre um conjunto de ideias. Mas o que não dá é o conjunto de ideias ser mais importante do que a realidade de dados, fatos e alianças econômicas que estão colocadas."

Relação da Argentina com Mercosul e BRICS na berlinda

Questionado se Milei deve comparecer à Cúpula do Mercosul, marcada para o dia 7 de dezembro no Rio de Janeiro, Jefferson Nascimento afirma que, apesar de Milei ter moderado a fazer seu discurso após a vitória nas eleições presidenciais, é difícil imaginar que, como um líder da extrema-direita, fará algum esforço para fortalecer um organismo internacional. "Me parece difícil imaginar que Milei vai se aproximar, vai fazer esse esforço de fortalecer o Mercosul."
A situação, no entanto, não se aplica ao BRICS, grupo que a futura chanceler argentina, Diana Mondino, afirmou nesta quinta-feira (30) que a Argentina não integrará.
O especialista aponta que "seria para a Argentina uma oportunidade interessante de participar do grupo, tendo em vista que o país passa por uma crise de reservas muito grande".

"A diversificação das fontes de crédito poderia ser uma oportunidade a mais para que o país pudesse gerenciar essa crise e superá-la. E é importante lembrar que, recentemente, o governo argentino pagou uma dívida do FMI [Fundo Monetário Internacional] com dinheiro da China, com empréstimos que vieram da China. […] poder diversificar e ter acesso, por exemplo, ao crédito do Banco do BRICS seria uma estratégia interessante, do ponto de vista pragmático, de conseguir diversificar as fontes de financiamento e gerenciar melhor as finanças do país."

Uma imagem do candidato presidencial argentino da aliança La Libertad Avanza (A Liberdade Avança), Javier Milei, é vista na janela de um ônibus enquanto seus apoiadores comemoram sua vitória no segundo turno das eleições presidenciais no Obelisco de Buenos Aires, 19 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 28.11.2023
Panorama internacional
Especialista explica por que a relação entre Javier Milei e EUA lembra 'um amor não correspondido'
Ele afirma que esse pragmatismo está presente nos esforços do Brasil para trazer a Argentina para o BRICS.

"Não à toa, o Brasil fez um esforço para incluir a Argentina dentro do BRICS na expansão que o grupo teve recentemente. Porque para o Brasil não interessa uma Argentina em crise. A Argentina é um dos principais parceiros do país, e é um intercâmbio muito grande de produtos, de mercadorias, um comércio bastante importante."

Por sua vez, Fabio Andrade acredita que Milei não deve distanciar a Argentina do Mercosul. Em sua avaliação, "os últimos sinais dão conta de que Milei tem total noção do tamanho e da importância dos países do Mercosul para a Argentina". "Então faz todo sentido que, ao contrário de todo discurso durante a eleição, ele participe da Cúpula do Mercosul."

Lula deve ir à cerimônia de posse de Milei?

Questionado se o presidente Lula deveria aceitar o convite de Milei e comparecer à cerimônia de posse do argentino, Fabio Andrade diz que "faria todo sentido Lula aceitar o convite".

"Passaria uma mensagem de que se pensa de forma republicana acima de quaisquer possíveis diferenças ideológicas ou até determinadas falas de cunho mais pessoal. E vamos lembrar: ainda que seja difícil a gente pensar exatamente o mesmo modelo, porque a conjuntura é outra, o mundo mudou muito nesses 20 anos. No primeiro governo Lula, o governo norte-americano era de George W. Bush, e isso não implicou em relações necessariamente ruins entre esses dois atores políticos."

Ele acrescenta que "Milei voltou atrás e fez tudo do ponto de vista 'by the books' da diplomacia". "Ele pediu que a diplomata [argentina] viesse com uma carta formal. Primeiro houve o convite ao ministro das Relações Exteriores, depois uma carta. Está tudo dentro do script. Então faz todo o sentido que o governo Lula, em um sinal de que pensa republicanamente, compareça à posse de Milei."
Donald Trump, ex-presidente dos EUA (2017-2021), fala durante Convenção do Partido Republicano da Carolina do Norte em Greensboro, Carolina do Norte, EUA, 10 de junho de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 28.11.2023
Panorama internacional
Trump pode não comparecer à posse de Milei, contrariando anúncio prévio
Feed de notícias
0
Para participar da discussão
inicie sessão ou cadastre-se
loader
Bate-papos
Заголовок открываемого материала