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Ruanda: analistas explicam as causas do genocídio que deixou cerca de 1 milhão de mortos em 1994

© AP Photo / Ben CurtisNesta foto de arquivo, pessoas participam de uma vigília à luz de velas em ato para marcar os 25 anos do genocídio, na capital Kigali. Ruanda, 7 de abril de 2019
Nesta foto de arquivo, pessoas participam de uma vigília à luz de velas em ato para marcar os 25 anos do genocídio, na capital Kigali. Ruanda, 7 de abril de 2019 - Sputnik Brasil, 1920, 05.04.2024
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Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam como a colonização, o racismo e as disputas de poder resultaram em um massacre brutal, "com vizinhos matando outros vizinhos".
O genocídio em Ruanda completa 30 anos em 2024. Considerado por analistas internacionais um dos episódios mais sombrios da história, ele ocorreu entre abril e julho de 1994, quando ruandeses do povo hutu assassinaram indiscriminadamente compatriotas do povo tutsi, em meio a uma disputa de poder no país. Estima-se que 70% da população tutsi tenha sido morta, número que gira em torno de um milhão de pessoas. Apesar dos números, o genocídio em Ruanda não é tão abordado como são outros perpetrados ao longo da história.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam as causas do genocídio, o papel da colonização na escalada de violência e como está o país atualmente, 30 anos após o massacre.

Como era a estrutura hierárquica de Ruanda antes da colonização?

Guilherme Ziebell, professor do curso de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da mesma universidade, explica que os tutsis e hutus se estabeleceram na região dos Grandes Lagos, onde estão localizados Ruanda, Burundi, República Democrática do Congo — posteriormente colonizados pela Bélgica — e Uganda e Tanzânia — posteriormente colonizados pelo Reino Unido.

"Eles [tutsis e hutus] vão se assentar na região dos Grandes Lagos […] a partir de uma série de processos e de movimentos populacionais migratórios que vão ocorrer na África Subsaariana entre o século VI e o século XVIII. Então tem toda uma conformação ao longo desse período", explica o professor.

"Mais ou menos desde o século XII, a gente vai ter a convivência nesse espaço que conforma Ruanda especificamente, mas também Burundi, de comunidades distintas que vão formar progressivamente uma sociedade entre elas e que, em linhas gerais, tinham como base da sua organização, em cada uma dessas comunidades, formas de viver e de produzir bastante específicas."
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Ziebell diz que os hutus eram um povo de agricultores que formavam a maioria da população daquela região, enquanto os tutsis representavam cerca de 15% da população e eram dedicados à criação de gado.

"A gente tem um terceiro grupo que compõe essa multiplicidade da região, e que em geral fica esquecido, que são os tuás, um grupo que compunha cerca de 1% dessa população [] e que era um grupo majoritariamente caçador, coletor. Então a gente vai ter a composição desses três grupos, a origem desse grupo que a gente chama de hutus e a origem desse grupo que nós chamamos de tutsis. Não é a região, eles são frutos desses movimentos migratórios, diferentes dos tuás, que têm uma origem mais vinculada à própria região."

"A interação desses três diferentes grupos vai levar à formação de uma sociedade que é fortemente estratificada, fortemente hierarquizada e que vai ter, na composição majoritária da sua elite, e isso vai se apresentar no Exército dessa sociedade, na corte dessa sociedade, que vai ter uma base fundamentalmente monarca, no sistema administrativo dessa sociedade. Toda essa elite era majoritariamente composta por indivíduos que a gente colocaria dentro daquele grupo que nós chamamos de tutsis. E a maioria esmagadora dos servos dessa sociedade, daqueles agentes que ocupavam espaços inferiores nessa sociedade hierárquica, era composta por indivíduos que a gente vai considerar como sendo hutus."
Ziebell explica que essa dinâmica de divisão tem como base os ganhos gerados por cada modo de produção, sendo a pecuária, dominada pelos tutsis, a de maior renda.

"Então é a partir daí que sai esse resultado de uma maioria da elite fundamentalmente tutsi. Essa dinâmica, evidentemente, vai gerar uma série de tensões entre esses diferentes grupos, os majoritariamente produtores agrícolas e os majoritariamente pecuários."

Qual o papel da colonização na divisão entre tutsis e hutus?

Ziebell explica que "a partir do final do século XIX e início do século XX, a gente tem todo o processo de colonização operado pelos europeus".
"Essa colonização é originalmente alemã, que se materializa ali entre 1890 e 1900 mais ou menos, mas depois, com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, vai passar para a Bélgica, que vai ser quem vai passar a operar essas colônias. Esse processo de dominação colonial pelos europeus tem também uma série de peculiaridades, mas é interessante perceber, nessa discussão específica, que a presença dos europeus e a dominação europeia vão contribuir significativamente para, por um lado, cristalizar essa distinção entre esses dois grupos — o grupo chamado de tutsi e o grupo chamado de hutu — a partir da ideia de que essas categorias seriam categorias étnicas", explica.

"Essa ideia de etnicidade não é presente dessa forma, ou de uma forma mais próxima, como a gente entende, antes da presença europeia. São os europeus que vão dar esse sentido de etnicidade para as diferenças que se conformam a partir de grupos sociais distintos e que, dependendo do olhar que a gente está dando, são, sobretudo, classes sociais distintas. Mas mais do que isso, além de cristalizar esses elementos como elementos étnicos, eles vão operacionalizar essa distinção cristalizada por eles no processo de dominação", complementa.

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Por sua vez, Franco Alencastro, mestre em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), explica que a história do acirramento de tensão entre os tutsis e hutus também têm um componente racista. Isso porque os belgas escolheram priorizar o povo tutsi não apenas por sua posição hierárquica, mas por sua aparência física mais parecida com a dos europeus.

"Selecionaram também pessoas dentro desse grupo que, de acordo com eles, eram pessoas que tinham traços mais europeus. Por exemplo, nariz mais fino, traços mais finos de modo geral que, na concepção racista da época, eles consideraram traços superiores, evidência de um intelecto superior, de uma raça superior. E eles premiaram esse grupo também com uma ascensão social dentro dessa administração belga. E daí muitas posições intermediárias na administração, no serviço público que acontecia dentro do aparato colonial belga, foram dadas para esse grupo."

Segundo Ziebell, o que ocorreu com a colonização é que os tutsis, embora não exercessem o poder, estavam mais próximos do colonizador, enquanto os hutus, mais afastados, passaram a sofrer de forma mais intensa a dominação colonial, o que levou a uma escalada de tensão entre os povos na primeira metade do século XX, que foi reacendido após o processo de independência de Ruanda, em 1962, quando chegou ao poder Grégoire Kayibanda, de origem hutu, que, segundo Ziebell, assumiu o cargo de primeiro-ministro e promoveu o que em sua visão seria um acerto de contas.
"É um governo que é bastante repressivo, bastante violento, mas com uma violência fundamentalmente focada nos tutsis. Tem um processo de exclusão política também dos tutsis. Então tem essa reversão, os tutsis passaram um período colonial todo com um acesso maior ao poder e, a partir de então, são destituídos do poder e perdem esse acesso, e também são alvo de violência e de uma série de ataques, o que vai contribuir, uma vez mais, para intensificar o êxodo de tutsis para outros territórios na mesma região."
O especialista acrescenta que essa repressão se manteve após o golpe militar em Ruanda, em 1973, que levou Juvénal Habyarimana, também hutu, ao poder. Porém, a repressão de Habyarimana não se limita aos tutsis, mas a toda forma de oposição ao seu regime, embora os tutsis tenham sido mantidos fora do espectro político.

Qual foi o motivo do genocídio em Ruanda?

Ziebell afirma que no período do final de década de 1980 e início da década de 1990, com o final da Guerra Fria, o mundo atravessou um processo de transformação nas relações internacionais, pautado na ideia de que a democracia liberal euro-ocidental era o modelo a ser seguido pelo mundo inteiro.
Com isso, a França, principal aliado ocidental de Ruanda, começou a fazer pressão por um processo de democratização no país, com a criação de um sistema multipartidário. Segundo o especialista, a Frente Patriótica Ruandesa, liderada por Paul Kagame e composta essencialmente por tutsis que deixaram o país por conta da repressão, dá início a uma incursão para retornar ao território ruandês, a partir do vizinho Uganda.
"A partir daí a gente tem o início de uma guerra civil opondo a Frente Patriótica, de base tutsi, aos grupos de base hutu internamente. Ao longo dos anos seguintes, o que a gente vai ver é a intensificação [...] da violência, evidentemente, mas também a intensificação progressiva de uma radicalização de um discurso de ódio e a operacionalização daquela ideia de etnia e de separação entre tutsis e hutus como um elemento de oposição", explica o especialista.
"E, nesse processo, a mídia ruandesa tem um papel fundamental. A mídia de base hutu e radical, evidentemente, ela tem um papel fundamental em construir a ideia dos tutsis como inimigos e dos tutsis como sendo todos traidores. As mulheres tutsis são colocadas como perversas, os homens são colocados como traidores e toda e qualquer pessoa que compactuasse com tutsis, mulheres, homens e assim por diante, seria considerada também um traidor."
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Alencastro afirma que o estopim para o genocídio foi a queda do avião que transportava Kayibanda, em 6 de abril de 1994.
"O que acontece logo em seguida é que isso é usado como motivo para iniciar o genocídio de Ruanda. Desse modo, o grupo Hutu Power começa a se reunir e começa a se utilizar de códigos, principalmente através do rádio, para coordenar um ataque descentralizado e maciço contra os tutsis que estavam espalhados pelo território de Ruanda", explica Alencastro.

"E o que se segue ao longo das semanas seguintes, é algo que realmente se dá num espaço bastante curto de tempo, é a morte de centenas de milhares de tutsis. Diferentemente de outros genocídios que a gente tem notícia, por exemplo, acho que o mais conhecido é o Holocausto, que se deu numa escala industrial e com métodos extremamente organizados, o genocídio de Ruanda acontece numa escala quase que vizinhança-vizinhança, são vizinhos matando outros vizinhos e assim por diante, ele se dá verdadeiramente numa escala descentralizada e local", acrescenta.

Segundo Alencastro, o genocídio chegou ao fim com a ascensão de Paul Kagame ao poder e a derrota das forças do Hutu Power.
"O país estabeleceu uma justiça reparadora que eu, pessoalmente, acho um exemplo muito interessante. Foram julgamentos públicos e descentralizados, por um motivo muito simples, [...] você não tinha uma cúpula responsável pela maioria dos crimes. O que você tinha era uma estrutura totalmente descentralizada de grupos, às vezes grupos de vizinhança, grupos de bairro, que iam e matavam pessoas na sua localidade. Então, como que você faz para, primeiro, punir e, eventualmente, reparar, reintegrar essas pessoas na sociedade, é um desafio."
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Alencastro afirma que o governo percebeu que se o julgamento ocorresse por meio de um tribunal superior, seria complexo e poderia se arrastar por anos.

"Então, o que eles fizeram foi um sistema descentralizado em que cada localidade julgava os casos que aconteceram lá. E você tinha tribunal de bairro, em que as pessoas que participaram dos massacres tinham a oportunidade de se apresentar e pedir desculpas, e a reunião lá do grupo de vizinhos e pessoas de cada respectiva comunidade ouvia o que essa pessoa tinha a dizer e depois atribuía uma sentença."

Como está Ruanda hoje?

Ziebell afirma que Ruanda hoje é um país bastante diferente do que era antes do genocídio, por uma série de razões.
"A partir do genocídio e da chegada do Paul Kagame ao poder, a gente tem a adoção de uma série de medidas que visavam, claramente, o desenvolvimento do país e a transformação da situação socioeconômica [...]. Ruanda, desde os anos 90, conseguiu uma transformação econômica substancial, a gente tem uma retomada em linhas gerais da dimensão do espaço ocupado pela indústria, a gente tem um incremento substancial do espaço ocupado pelos serviços na construção, na composição da economia ruandesa, a gente tem um crescimento muito significativo desde o início do século XXI, se a gente pegar a segunda década do século XXI como exemplo, é um crescimento médio anual de mais de 7% ao ano."
Ele acrescenta ainda que Ruanda conseguiu reduzir significantemente a mortalidade infantil de 180 mortes por nascimentos para 40, e que hoje é o país com mais participação feminina na política, substancialmente superior aos países europeus.
Alencastro destaca que Paul Kagame permanece no poder até os dias atuais, não apenas por conta do crescimento econômico e das melhorias sociais que têm acontecido no país, mas por sua capacidade de ter interrompido o genocídio.
"Então ele derrotou as forças que estavam conduzindo o genocídio e, em certa medida, ele até hoje é visto por uma boa parte da sociedade ruandense como o pacificador de Ruanda. Então, em parte, essa legitimidade que se dá ao governo até hoje, se dá um pouco por isso", conclui o especialista.
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