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Perda de relevância da França espelha decadência da Europa na geopolítica global, dizem analistas

© AP Photo / Andre PennerEmmanuel Macron durante reunião com a comunidade empresarial na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Brasil, 27 de março de 2024
Emmanuel Macron durante reunião com a comunidade empresarial na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Brasil, 27 de março de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 02.04.2024
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Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que a influência em queda da França como ator global relevante é um sinal de que a Europa caminha para se tornar um continente cada vez mais dispensável nas relações políticas e econômicas.
O presidente francês, Emmanuel Macron, tem ganhado destaque nos noticiários nas últimas semanas.
No início de março, ele irritou seus parceiros da União Europeia (UE) ao afirmar que a Europa não pode ser "covarde" em relação ao conflito ucraniano e sugerir o envio de tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para lutar pelo regime de Kiev, o que na prática desencadearia um conflito global.
Posteriormente, ele causou polêmica ao postar em suas redes sociais um vídeo com ajuda humanitária da França sendo lançada por via aérea, à Faixa de Gaza, em meio à ofensiva israelense no enclave, sendo acusado de hipocrisia pelo fato de a França ser um dos países fornecedores de armas a Israel.
Mais recentemente, Macron veio ao Brasil para um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, marcado por trocas de declarações afetivas.
Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que essa postura mais atuante de Macron no cenário internacional, baseada em uma liderança forçada, é fruto de problemas internos e externos que não afetam apenas a França, mas vários países da Europa, e sinalizam o declínio da relevância do continente na geopolítica global.

Qual a importância do continente europeu para o mundo?

Afonso de Albuquerque, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM/UFF), afirma que, para entender a situação de Macron, "vale a pena começar pelo problema macro", pois segundo ele "não dá para pensar a situação da França atual sem pensar a questão da União Europeia".

"Quando a gente fala em União Europeia, […] fala em um corte. Porque quando a União Europeia surge, absorve todas as unidades. Então a capacidade de qualquer país do bloco de fazer política externa independente não é eliminada, mas é limitada em algum grau, já que agora existe uma macroestrutura, que é a União Europeia. […] Parte do esforço da França será voltado para manter a União Europeia. E aí é preciso ver que a França é um país que vive um processo contínuo de degradação da posição externa ao longo do último século."

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Ele acrescenta que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, "a França experimenta um processo de declínio relacionado ao fim da colonização formal e ao avanço dos Estados Unidos como líder do campo ocidental", o que colocou a Europa em posição secundária.
Somada a isso, está a perda acelerada da relevância econômica não apenas da França, mas também da Alemanha.

"A Alemanha hoje está decaindo aceleradamente de sua condição de superpotência industrial, tanto devido aos problemas de acesso a combustível e energia, não provocados, mas agravados pela guerra entre Rússia e Ucrânia e a posição que a Alemanha tomou [no conflito], mas também devido à perda de competitividade, em termos mais gerais, causada pelo fato de que a Ásia produz mais barato, de que a própria Alemanha e outros países europeus levam suas fábricas para fora do próprio país em busca de maior lucratividade."

Ele afirma que outro fator que levou ao declínio europeu é a ascensão de novos atores, sobretudo do Sul Global, que ganharam relevância na comunidade internacional, como China, Rússia, Brasil e Índia.
"A posição que o Brasil desempenha no BRICS […] é muito subestimada. O Brasil é o país do BRICS com o maior poder de interlocução global", explica.
Albuquerque acrescenta que Lula atualmente tem uma posição muito invejável, com capacidade de não sujeitar o Brasil à submissão europeia.

"É a posição de você poder ser do BRICS, poder dizer 'Não vamos apoiar a Ucrânia' e, mesmo assim, a Europa dizer 'Ok'. Porque a posição do Brasil não é mais a posição colonial de autocolonização, de submissão internacional que já foi no passado. E isso é interessante porque torna o Brasil um país mais confiável do que um país submisso. Porque se o Brasil fosse submisso, se o Brasil cedesse à Europa em tudo o que ela quisesse, o Brasil não valeria tanto para a Europa quanto vale."

Segundo Albuquerque, todos esses fatores fizeram cair por terra "a ideia de superioridade que muitos europeus, acima dos 40 anos, ainda cultivam, expressa pelo chefe de política externa da UE, Josep Borrell, que em 2022 causou polêmica ao afirmar que 'a Europa é um jardim, o mundo é uma selva'".

Qual a raiz do encolhimento da França na África?

Natali Hoff, professora de relações internacionais e ciência política do Centro Universitário Internacional (Uninter), afirma que a perda de influência da França entre ex-colônias na África também é um reflexo do declínio europeu.
"No caso francês, quando a gente pensa nessa perda de relevância geopolítica, para mim fica evidente as relações com essa África francófona. Nos últimos anos, a França tem tido muitos reveses, muitas perdas estratégicas e políticas, principalmente nos países da região do Sahel que foram colônias francesas, e que a França, depois do processo de independência, se estabeleceu como a potência que ali influenciava e tinha vantagens para utilizar os recursos, explorava esses países", explica.
"Nos últimos tempos, a gente assistiu a uma série de golpes de Estado que subverteram governos, alguns governos até autoritários e longos, e a instalação de novos grupos com outra visão sobre a influência francesa, uma visão mais negativa", acrescenta a especialista.
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Hoff afirma que a perda da influência francesa sobre essas regiões é bem significativa porque afeta a exploração econômica de recursos muito sensíveis e leva a França "a costurar novas parcerias e novos acordos para substituir esses recursos".
A especialista afirma ainda que as recentes atitudes de Macron buscam "cavar um pouco mais de protagonismo para essa França que vem perdendo relevância, mas que também é algo que se observa com relação a toda a Europa".
"Ela [a Europa] já não é tão relevante quanto outros atores, como […] China e Estados Unidos. Militarmente, também não é tão relevante quanto a Rússia. Acho que essa perda de relevância geopolítica da França é meio que um sintoma que a gente vê com todos os países da Europa, e que ficou mais evidenciado ainda quando começamos a ver as críticas dos países do Sul Global ao histórico de exploração econômica, ao fato de que as instituições liberais, multilaterais, pensadas para definir questões internacionais, muitas vezes atendem mais aos interesses dos países desenvolvidos, entre eles os da Europa, também questionando a hipocrisia dos países europeus com relação ao conflito entre Israel e Hamas em Gaza, onde se observa que aqueles mesmos países que defenderam a Ucrânia, que defendem os direitos humanos de maneira tão veemente, não se posicionam do mesmo modo com as violações constantes que a gente tem visto acontecer em Gaza, cometidas pela parte de Israel."
Quanto à perda de influência da França na África, Estevão Chaves de Rezende Martins, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), destaca que no espectro político europeu ainda há quem considere que "a imigração clandestina, o islamismo e o fanatismo terrorista são a fonte e o resultado de todos os males".

"Majoritariamente, o país [França] é europeísta — consciente, bem ou mal, que no século 21, fora da integração, não há salvação. As eleições para o Parlamento europeu servirão de termômetro do sentimento social e político em todos os 27 membros", diz Martins.

Ele afirma que, apesar das declarações que irritaram países da UE sobre o envio de tropas à Ucrânia, "Macron é um europeísta convicto e, mesmo quando toma a iniciativa de falar de forma ousada, sempre busca negociar com os demais países da UE e da OTAN".
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Segundo Martins, a postura calorosa de Macron durante sua visita ao Brasil reflete uma tentativa de se reaproximar do país após anos de afastamento.

"Houve uma paralisia geral das relações entre os dois países, agravada pelo fato de [Jair] Bolsonaro, com sua usual incivilidade, haver ofendido a esposa de Macron no plano pessoal. A eleição do presidente Lula foi saudada efusivamente pelo governo francês, apontando para um aquecimento e [uma] cooperação relançadas, acordo do Mercosul excluído."

Movimento de ruptura com a França pode chegar à Guiana Francesa?

Questionado se essa tendência de busca pela ruptura com a França pode alcançar a Guiana Francesa, vizinha do Brasil e território ultramarino da França, Martins descarta essa hipótese.

"Improvável. O problema da Guiana, com cerca de 300 mil habitantes, agora está mais na invasão de gangues armadas, originadas no território do Brasil, de garimpeiros ilegais, traficantes de armas e de drogas. […] Não há notícias de associação entre a Guiana [Francesa] e as políticas dos Estados africanos."

Albuquerque, por sua vez, afirma não considerar essa hipótese em curto prazo. Ele aponta que a Guiana Francesa é um território colonial da França com uma boa relação com a metrópole e algumas vantagens garantidas, como o valor do salário, que é pago em euro, o que tem levado muitos brasileiros a migrarem para o país.
Porém, ele sublinha que em longo prazo, em um "espectro de decadência da França, é possível imaginar que sim, uma vez que as vantagens do laço com a metrópole não estejam mais presentes".

"Eu imagino que a França, ou seja, o que o Macron está fazendo, é administrar uma queda. As relações econômicas do mundo cada vez mais vão dispensar a Europa. A Europa vai se transformar num continente dispensável. É o que eu vejo para as próximas décadas. As relações globais vão passar longe dali. E quando isso acontecer, de fato, perde-se todo o poder. Historicamente, isso aconteceu em todos os impérios. E não há razão para imaginar que a Europa será muito diferente disso."

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