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Análise: geografia acidentada e altos impostos travam o potencial do Brasil no comércio com vizinhos

© Foto / José Paulo Larcerda / CNITrabalhadores operam máquinas em indústria brasileira
Trabalhadores operam máquinas em indústria brasileira - Sputnik Brasil, 1920, 20.02.2024
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Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas abordam o desejo manifestado pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin, de ampliar o comércio do Brasil com países da América Latina e apontam quais os principais obstáculos para tornar a indústria nacional mais competitiva.
O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, defendeu recentemente a ampliação da troca comercial entre o Brasil e países da América Latina. O desejo foi manifestado no evento de abertura do B20 Brasil 2024, fórum promovido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) que reúne autoridades do governo e lideranças empresariais nacionais e estrangeiras de países do G20.
Não foi a primeira vez que Alckmin defendeu a ampliação das exportações brasileiras para países do continente. No ano passado, em entrevistas, ele destacou que o comércio intrarregional correspondia a apenas 26% das transações, número bem abaixo dos 50% correspondentes às trocas comerciais entre Canadá, México e Estados Unidos, e dos cerca de 70% correspondentes ao comércio entre a União Europeia (UE) e países asiáticos.
"Temos que começar pelos vizinhos, então fazer um grande esforço comercial na região, que é para onde nós vendemos caminhão, automóveis, ônibus, autopeças, linha branca [segmento que abrange eletrodomésticos], produtos de valor agregado", disse o vice-presidente, em um evento da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib) realizado em abril do ano passado, em Brasília.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam de que forma o Brasil pode impulsionar a troca comercial com países vizinhos.

Quais são as principais dificuldades de integração dos países latinos?

Para Andrew Traumann, professor de história das relações internacionais no Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) e coordenador da pós-graduação em geopolítica da Ásia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), um dos principais desafios para ampliar a troca comercial entre países da América Latina, em geral, e da América do Sul é a geografia da região.
"Nós somos uma região em que existem vários obstáculos naturais, nós somos uma região com dificuldade de escoamento de produção, isso dificultou muito a integração do Mercosul. O Brasil, por exemplo, é um país que historicamente sempre apostou muito mais no modal rodoviário, e por isso que nós somos tão dependentes da gasolina, por isso que o choque do petróleo, em 1970, nos atingiu tanto, por isso que cada aumento da gasolina gera tanta agitação social. É porque nós praticamente não utilizamos o modal ferroviário como é utilizado em outros países", explica o professor.
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Ele afirma que alguns países, como Bolívia e Chile, usam ferrovias, porém mais voltadas para o transporte de pessoas do que de cargas. A falta de ferrovias, somada aos obstáculos naturais de florestas e cordilheiras que separam os países, dificulta as trocas comerciais, diz. Além disso, há preferência em exportar para países do Hemisfério Norte.

"Existe uma tendência, apesar de nós termos um comércio muito intenso com a Argentina, da gente priorizar mais a América do Norte e a Europa como parceiras comerciais. Isso se estende também aos nossos vizinhos."

Quais são os obstáculos enfrentados pelo Mercosul?

Traumann acredita ser possível aumentar as trocas comerciais, mas descarta que isso seja feito no âmbito do Mercosul, que ele afirma ainda não ter alcançado todo o seu potencial.
"O Mercosul existe desde a década de 1990, mas nunca aconteceu uma integração de fato, como nós vemos na União Europeia e em outros blocos. A gente acabou realmente se atendo mais a comércio bilateral com nossos vizinhos, e aí também cabe a questão da complementaridade. Para você ter um comércio bilateral com o país você tem que ter, possuir algo para exportar que o outro país deseja e vice-versa. E o problema é que muitas das vezes nós e esses países, que são os países de natureza mais agrícola, acabamos produzindo basicamente as mesmas coisas. Por exemplo, quando a gente importa trigo da Argentina é uma coisa meio artificial, a gente compra o trigo da Argentina muito mais para ajudar a Argentina, para não ficar uma balança comercial tão desequilibrada, do que qualquer outra coisa. Porque a gente exporta mais produtos industrializados do que importa produtos industrializados deles, então acaba sendo uma coisa um pouco, vamos dizer, 'forçada'."
Sobre o Mercosul, ele destaca que, embora a alternância de poder seja sempre bem-vinda, houve muitas trocas de governos com visões muito diferentes nos últimos anos, o que afetou a relação entre os países-membros.
"A gente tem agora um presidente de direita na Argentina. Há pouco tempo, nós tínhamos um presidente, se não de esquerda, mais de centro-esquerda e mais alinhado ao governo brasileiro. E essas questões interferem, sem dúvida alguma. Por exemplo, cerca de um ano atrás nós tivemos uma visita do presidente Lula ao Uruguai. E o presidente do Uruguai, [Luis] Lacalle Pou, não é assim um grande entusiasta também do Mercosul. Inclusive ele estava buscando fazer acordos bilaterais com a China em separado do Mercosul", diz o especialista.

"Agora nós temos também um presidente de esquerda no Chile, só que nós não temos uma relação tão próxima com o Chile. Fora isso, o Chile vive uma série de problemas internos. Então os nossos vizinhos estão passando por sérios problemas de instabilidade; digamos assim, quase tivemos uma invasão da Guiana pela Venezuela, uma guerra civil no Equador. A situação na região nos últimos tempos não está muito fácil para a gente. Quem dera a gente pudesse simplesmente falar em comércio, está meio difícil ultimamente isso", complementa.

Como anda o comércio da América Latina?

Traumann destaca ainda que, apesar da fala de Alckmin, uma das características do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de fortalecer a integração regional, é a busca pelo multilateralismo, com intenção de diversificar parcerias para além das Américas do Sul e Latina, envolvendo países da África e do Oriente Médio.

"Eu acredito que o governo brasileiro vem tentando, dentro do possível, multilateralizar essas relações com África, com Ásia, com América Latina, tentando, de todas as formas, assinar esse acordo [do Mercosul] com a União Europeia. Então acredito que essa é uma tentativa que vem sendo feita, porque, realmente, a previsão de crescimento da nossa região [América Latina] é pífia [cerca de 1,9% previsto para 2024]."

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Ele ressalta que o Brasil deve estar atento e torcer pela recuperação econômica da Argentina para que haja a retomada das relações comerciais entre os países, que caíram após a ascensão de Javier Milei à presidência do país vizinho, em 10 de dezembro.
"Houve uma diminuição, já da ordem de 24%, da taxa de importação dos argentinos de produtos brasileiros. Com a desvalorização do peso e com a crise econômica, a tendência é isso piorar, diminuir ainda mais. Um dos principais produtos que a gente exporta para eles são peças automotivas e automóveis. Então se eles têm 45% da população argentina abaixo da linha da pobreza, quem que está comprando o carro? Quem está importando carro do Brasil, se eles estão preocupados em comprar comida?"
Questionado sobre qual parceiro comercial vizinho do Brasil poderia ocupar o lugar da Argentina, Traumann aponta para o Paraguai e a Bolívia.

"Nós importamos gás natural da Bolívia, nós temos exportações de produtos agrícolas para a Bolívia. Nós temos uma ligação umbilical com o Paraguai devido à questão de Itaipu. Temos uma questão de relações, também, de questões de securitização de fronteiras por causa do PCC, do tráfico de armas, de drogas. Temos um comércio bastante relevante com o Paraguai, em uma eventual substituição da Argentina."

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Ele acrescenta que outras economias mais estáveis que poderiam se tornar os principais destinos das exportações brasileiras seriam o México e o Chile.
"O México tem uma economia bastante forte, sim, dentro do nível da América Latina, uma população que tem hábitos de consumo parecidos com os do Brasil. O problema, no caso, é mais a questão da distância; não é tão próximo, mas seria um destino bastante interessante. E o outro país seria o Chile, que também não está passando mais por uma crise política; parece que viraram a página da questão da Constituição, não têm problemas econômicos tão agudos quanto os nossos vizinhos aqui."

Como é o comércio interno da América Latina?

Renan Silva, professor de economia do Ibmec Brasília, afirma que o Brasil tem vocação para trocas comerciais com vizinhos e acredita ser possível a ampliação proposta por Alckmin.
Segundo Silva, é possível estender a relação comercial que o Brasil tem com a Argentina a outros países, dada a dimensão continental do Brasil e a quantidade de indústrias existentes no país.
"É natural que o Brasil possa explorar muito mais esse segmento, principalmente com relação à indústria e à tecnologia."
Questionado sobre se essa ampliação nas trocas comerciais poderia ser feita no âmbito do Mercosul, o especialista afirma que sim, mas que é necessário que parceiros vizinhos criem condições melhores e ambientes de negócios mais maduros para uma circulação do capital facilitada.
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Silva aponta ainda que há potencial para o Brasil desenvolver seu comércio exterior com países da América Central, mesmo estes sendo mais influenciados por México e EUA, em razão da proximidade. Porém destaca que é preciso que "o Brasil faça o dever de casa".
"O Brasil tem muitas falhas estruturais que podem ser corrigidas. O Brasil, hoje, está muito mal ranqueado no índice de competitividade, no índice de inovação […]. Para você se tornar mais competitivo no comércio exterior, seja com a América Latina seja fora, você precisa ganhar o mercado, precisa ganhar a confiança do mercado. E você precisa ter produtos de qualidade e bem competitivos", explica Silva, acrescentando que foi isso que foi feito na Coreia do Sul e em outros países asiáticos a partir da década de 1980.
O especialista diz ainda que o Brasil atravessou mais uma década perdida, entre os anos de 2014 e 2024.

"Chegamos a uma recessão muito forte em 2015 e 2016, e passamos pela COVID-19. Isso foi suficiente para anular praticamente uma década. Então você tem tudo por fazer. Tem um consumo represado […], tem a renda das famílias para recuperar. Temos também que equacionar a questão do endividamento das famílias, que se tornou muito crônico nesse período. Isso está acontecendo de forma lenta e gradual."

O que poderia ser feito para aumentar a competitividade da indústria brasileira?

Silva destaca que um dos pontos fracos do Brasil é a carência de exportação de produtos de maior valor agregado. No entanto ele afirma que a indústria brasileira, com os programas que estão sendo implementados por Alckmin, pode ganhar fôlego no aumento de tecnologia de valor agregado.
"Eu acho que esse é o ponto, levar [para outros países] produtos com maior valor agregado, que têm alguns elementos relacionados à tecnologia."
Ele aponta ainda a necessidade de adequar os impostos para elevar a competitividade da indústria nacional.

"É certo que alguns países têm impostos mais altos que o Brasil, mas o Brasil tem renda muito baixa, então os nossos impostos não são adequados para a nossa renda. Por isso nós temos uma economia informal muito grande, 39% da economia é informal. Então vale a pena cobrar tantos impostos, não conseguir receber os impostos e empurrar as pessoas para a economia informal? Não vale a pena."

O que fazer para diminuir os impostos no Brasil?

Questionado sobre qual a fórmula para reduzir os impostos, tornando a indústria mais competitiva, Silva aponta as despesas obrigatórias, que fazem parte das despesas públicas, que, segundo ele, são algo extremamente pesado que inibe qualquer tipo de investimento por parte do governo.
Da esquerda para a direita: o vice-presidente Geraldo Alckmin; o presidente Luiz Inácio Lula da Silva; a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck; e o ministro da Casa Civil, Rui Costa. Os representantes do governo federal participam de reunião do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), no Palácio do Planalto. Brasília (DF), 22 de janeiro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 22.01.2024
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"São justamente as despesas com Previdência (ainda são crônicas), e isso tem que ser equacionado. As despesas do administrativo também são muito elevadas. Então a Previdência é mais ou menos 55% das despesas. O administrativo, mais ou menos 20% das despesas. Aí você já tem 75%. Você vê outros benefícios, o LOAS [Lei Orgânica da Assistência Social], o Bolsa Família, que não é tanto o problema, mas também acaba pesando, entre outros, 95% das despesas do governo são obrigatórios para essas despesas", diz Silva.

"É como se o governo fosse apenas um pagador de boleto. E se não pagar, qualquer governo vai ser caso de impeachment, porque é obrigatório. O que está no lado que não é obrigatório são os investimentos como, por exemplo, o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e a educação. A educação já consome na faixa de três e poucos por cento das despesas, o que é muito pouco", acrescenta.
Segundo o especialista, é nas despesas obrigatórias que se encontra "gordura" para baixar os impostos, mas ele afirma que é necessária coragem para tomar a medida.

"Porque você vai enfrentar pontos de resistência ali muito fortes, de grupos e agentes que vivem realmente em atendimento ao próprio governo […]. O governo nem toca nesse assunto, porque politicamente é muito arriscado, você pode queimar muito capital político tentando corrigir as coisas."

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