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Vitória de Milei na Argentina pode influenciar o libertarianismo no Brasil?

© AP Photo / Natacha PisarenkoJavier Milei acena durante seu discurso de vitória após vencer o segundo turno da eleição presidencial, em Buenos Aires. Argentina, 19 de novembro de 2023
Javier Milei acena durante seu discurso de vitória após vencer o segundo turno da eleição presidencial, em Buenos Aires. Argentina, 19 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 22.11.2023
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Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam o que é a filosofia libertária defendida por Javier Milei, e quais as chances de a ideologia ganhar espaço na política brasileira.
Eleito presidente da Argentina no último domingo (19), Javier Milei colocou a filosofia libertária no centro do debate político do país vizinho. Durante sua campanha, ele se definiu como adepto da ideologia, conquistando eleitores desencantados com a política tradicional e em busca de uma ruptura radical capaz de retirar o país do atoleiro econômico no qual está preso há mais de duas décadas.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam o que é a filosofia libertária e qual a possibilidade de a ideologia se desenvolver no Brasil.
Hugo Garbe, professor e doutor em economia do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica que a filosofia libertária nasceu a partir do liberalismo, com a diferença de que tem um viés ainda mais liberal.

"Adam Smith foi o primeiro economista da história. Ele falava bastante sobre o termo francês laissez-faire, que significa 'deixa rolar'. Então [os economistas] Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, da Escola Austríaca, analisam essa filosofia, só que eles entendem a economia liberal como eles querem ela, com mais profundidade. Eles entendem que o Estado não deve ser empreendedor, que o Estado tem que garantir segurança, saúde e educação, no máximo, não intervir em preços, no que as pessoas vão comprar ou consumir. Essa é a principal característica da escola liberal, e ela [a filosofia libertária] acaba fazendo uma adaptação da filosofia econômica de Adam Smith e coloca o tema da liberdade com mais profundidade do que o próprio Adam Smith."

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Ele afirma que a América Latina não tem grupos libertários, e que o próprio liberalismo econômico ainda está engatinhando no continente.
"Tem algumas escolas de economia que propagam o pensamento liberal, mas […] nenhum partido econômico tem um pensamento liberal como o que Milei está pregando na Argentina. Mesmo o Partido Liberal não é liberal no sentido stricto sensu da Escola Austríaca, ou mesmo o Partido Novo. Todos eles são de direita ou de centro-direita."
Garbe diz que, embora haja alguns pensadores da filosofia no Brasil, a propagação política da ideologia ainda é muito incipiente em toda a América Latina.
Ele destaca que Milei "é o primeiro presidente do mundo a se caracterizar como um libertário baseado na Escola Austríaca da economia", e afirma que a vitória nas eleições presidenciais argentinas oferece uma boa janela de oportunidade para propagar a filosofia.

"Ele tem boas ideias, que são ideias já comprovadas na Europa, nos EUA. Ele vai fazer privatização, trazer caixa para o governo, reduzir custos, desburocratizar, simplificar o formato político argentino. Se ele conseguir fazer metade do que planeja, vai ser uma boa propaganda para o liberalismo econômico. E existe uma boa perspectiva de dar certo, sim, apesar do estado caótico em que a Argentina se encontra."

Garbe aponta que a eleição de Milei é muito boa para a América Latina, pois traz a oportunidade de diversificar a visão política, deixando de lado a ideologia de esquerda que, segundo ele, domina o continente.

"A América Latina está afundada no pensamento de esquerda, no socialismo, no esquerdismo há mais de um século, o que fez com que se tornasse um dos continentes mais pobres do mundo. Se a gente for comparar, por exemplo, o Brasil e a Coreia do Sul, na década de 1980, a Coreia do Sul era um país mais pobre, só que adotou o liberalismo econômico e hoje é um país com uma renda per capita de US$ 1.500 [cerca de R$ 7.300], enquanto a do Brasil é de US$ 300 [cerca de R$ 1.400]. É um país rico, e o Brasil é um país pobre. Então estava na hora de ter alguém com essa filosofia [na América Latina] para poder mostrar como [o liberalismo] pode ser positivo para o crescimento e desenvolvimento econômico da região."

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Porém ele afirma que no Brasil ainda não há políticos que possam ser classificados como libertários. "Mesmo [Jair] Bolsonaro, que se pregava como um político de direita e libertário, não era libertário", diz Garbe.
Ele acrescenta que a eleição de Milei traz a esperança de que a ideologia ganhe espaço na política brasileira. "O que a gente espera é que essa semente floresça aqui no Brasil também."
Os motivos que levaram a filosofia libertária a ganhar popularidade são alvo de debate entre economistas.

Retrocesso civilizatório?

Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), discorda da corrente de pensamento que aponta uma suposta má gestão da esquerda como responsável pela ascensão da ideologia. Em sua avaliação, a filosofia libertária ganhou fôlego à medida que a retórica do neoliberalismo perdeu força por conta da própria crise do sistema.
"A ideologia libertária ganhou força com a crise do neoliberalismo nos últimos anos. Contraditoriamente, é uma radicalização do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, ganha com sua crise."
Crítico à ideologia, ele afirma que o libertarianismo contraria os princípios dos direitos humanos.
"Essa ideologia coloca a liberdade individual acima do bem-estar coletivo, é incompatível com os direitos humanos e com diversas funções que o Estado moderno exerce, que são taxadas de ilegítimas. Em 1948, Hayek, uma das principais referências [do libertarianismo], se colocou frontalmente contra a declaração universal dos direitos humanos da ONU. O avanço dos libertários é um retrocesso civilizatório", critica o economista.
Rossi tem uma visão cética quanto à possibilidade de Milei ser bem-sucedido em resgatar a economia argentina, bem como em implementar as propostas radicais feitas em campanha.
"No caso concreto argentino, as propostas de Milei não têm nenhuma chance de dar certo. A ideia de dolarizar uma economia com escassez de dólares, por exemplo, só vai provocar uma crise no sistema de pagamentos e um empobrecimento da população. A ideia de acabar com ministérios e políticas públicas só vai acentuar a desigualdade e a pobreza argentina. Se o programa libertário for aplicado, Milei tem pouca chance de terminar o mandato."

Eleição de Milei pode energizar o libertarianismo no Brasil?

Para o economista Helio Beltrão, presidente do Instituto Mises, a vitória de Milei nas eleições argentinas é, ao mesmo tempo, uma surpresa e uma obviedade.

"A questão da obviedade é que há mais de um ano já se sabia na sociedade argentina, no mundo político argentino, que haveria mudança, que seria necessária a mudança. Tanto é que o Alberto Fernández [presidente argentino] nem concorreu à reeleição, Cristina [Kirchner] e [Mauricio] Macri também não. Então já havia uma sensação generalizada de que era necessária mudança ou não haveria demanda para alguém que não fosse realmente uma mudança", explica Beltrão.

Ele acrescenta que, nesse contexto, o resultado da disputa entre Sergio Massa e Milei se tornou óbvio. "O desastre econômico argentino provocou a perda de Massa, que é o ministro das Finanças [da Economia]; é ele que toca a economia, e a economia está em frangalhos."
Beltrão afirma que a grande surpresa não foi a vitória de um candidato visto como agente da mudança, mas sim o fato de as ideias libertárias terem encontrado eco dentro da sociedade argentina.

"É extremamente surpreendente que, pela primeira vez na história da humanidade, tem um presidente de um país relevante como a Argentina que defende o libertarianismo, uma versão do liberalismo ainda mais pura, com menos contradições."

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Para o economista, a vitória de Milei encerra um ciclo de 20 anos na Argentina. Segundo ele, desde 2003 o país é dominado pelo kirchnerismo, com um breve intervalo de Macri.

"Agora é o 'reset' da Argentina, realmente é uma mudança de direção muito grande, o que não significa que essa direção vai conseguir ter êxito", diz Beltrão, acrescentando que, para que tenha êxito, as propostas de Milei ainda precisam ser mediadas pelo congresso e pela sociedade argentina.

Ele afirma ainda que a ascensão de Milei representa "uma guinada […], uma revolução em termos morais da visão da sociedade".
"A sociedade [argentina] via o governo como sendo o agente econômico que resolve problemas na sociedade, por isso permite violações de propriedade privada o tempo inteiro, de direitos individuais. Agora há uma proposta de uma completa alteração nisso, de uma defesa inequívoca das trocas voluntárias, dos contratos, da segurança jurídica. [Em] tudo isso estamos falando, obviamente, de propostas, porque ele nem assumiu ainda."
Sobre a possibilidade de Milei influenciar uma guinada do tipo no Brasil, Beltrão diz acreditar ser possível, se o presidente eleito tiver resultados positivos em sua gestão.

"Mas não há garantia de êxito na implantação das propostas de Milei. Depende do processo político, algumas ideias vão ser diluídas, e em sua diluição, muitas vezes há consequências negativas. Então depende muito de como isso vai se dar na Argentina. Mas, em um primeiro momento, sim, não há dúvidas de que [a vitória de Milei] energiza o libertarianismo no Brasil e pode influenciar positivamente", conclui o economista.

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