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Tensões no Leste Asiático: o que muda na região com o fim da política pacifista do Japão?

© Philip FongSimpatizantes agitam bandeiras na frente de guarda de membros da família real do Japão durante a tradicional cerimônia de saudação de ano-novo no Palácio Imperial, em Tóquio. Japão, 2 de janeiro de 2023
Simpatizantes agitam bandeiras na frente de guarda de membros da família real do Japão durante a tradicional cerimônia de saudação de ano-novo no Palácio Imperial, em Tóquio. Japão, 2 de janeiro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 02.02.2023
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Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas apontam que acirramento entre Coreias do Sul e do Norte levou o Japão a buscar uma postura militar menos defensiva e mais ofensiva.
Uma das mais surpreendentes mudanças observadas nos últimos anos na geopolítica mundial foi a postura militar do Japão.
Adepto do pacifismo militar, o Japão vem ampliando exponencialmente os gastos militares. Em entrevistas recentes, o atual primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, afirmou que, até 2027, o governo japonês vai elevar o orçamento de defesa de 1% para 2% do produto interno bruto (PIB) do país. Isso significa um salto de atuais US$ 54 bilhões (cerca de R$ 278,9 bilhões) para US$ 80 bilhões (aproximadamente R$ 413,1 bilhões) até 2027.
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Em entrevista às jornalistas Melina Saad e Thaiana de Oliveira, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas destacam que essa mudança contrasta com a política pacifista adotada pelo país desde a derrota para as forças aliadas na Segunda Guerra Mundial. Após sua rendição, o Japão foi ocupado pelos EUA e somente tornou a ser um Estado independente em 1952, um ano após a assinatura do Acordo de Paz de São Francisco.
O pacto instituiu uma nova Constituição no Japão, elaborada por Washington, que continha em seu artigo 9º a proibição de o Japão possuir forças armadas. Pela nova lei, o país passaria a ser protegido pelos EUA e teria apenas forças para autodefesa.
Essa lei significa que o Japão "não pode, em tese, atacar ou invadir outro país", como explica ao podcast Bárbara Dantas Mendes, mestra em estudos japoneses pela Universidade de São Paulo (USP), doutoranda em relações internacionais na Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Ásia (Geasia) do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP e professora de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).

"O Japão tem essas forças de autodefesa para se defender. Caso seja atacado, ele consegue se proteger, revidar. Essas forças de autodefesa fazem parte de um acordo de cooperação mútua, elas surgiram a partir desse acordo com os Estados Unidos", explica Mendes.

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Porém ela destaca que isso começou a mudar à medida que o mundo bipolar começou a desaparecer e se agravou, em especial, com o acirramento de tensão entre as Coreias do Sul e do Norte. Essa mudança, segundo a professora, não foi de um ano para o outro, mas sim gradativa.

"Não é de hoje que o Japão vem trabalhando com as questões de defesa. Um marco muito importante foi a Guerra do Golfo. O posicionamento do Japão como aliado americano ficou conhecido como 'diplomacia do cheque', porque o Japão auxiliou os aliados na guerra, principalmente os EUA, financeiramente."

A professora explica que embora não tenha enviado tropas, o auxílio já foi uma mudança notável, complementada anos depois, após os atentados de 11 de Setembro.

"Logo após os atentados do 11 de Setembro, foi aprovada uma lei, ainda no período do mandato do primeiro-ministro Junichiro Koizumi, que permitia o envio de tropas de autodefesa para apoiar aliados em território estrangeiro. Não precisaria passar pelo crivo da ONU [Organização das Nações Unidas], como deveria ter acontecido em outras épocas. Agora o Japão poderia resolver isso diretamente, sem precisar dessa outra instância. E foi a primeira vez."

Segundo Bárbara Mendes, a terceira mudança veio em 2013, já com o país sob liderança de Shinzo Abe, morto em 2022, que instituiu uma estratégia de segurança nacional no Japão, que lançou as bases do que Abe classificou de "pacifismo pró-ativo".

"Esse documento todos os países têm. É basicamente uma lista, um roteiro de como o país se porta em determinadas situações de insegurança. Ela foi criada em 2013, durante o segundo mandato do primeiro-ministro [Shinzo] Abe, falecido recentemente."

Ela acrescenta que o documento com a nova estratégia foi o primeiro voltado para a questão desde a Segunda Guerra Mundial e indica que o Japão já vinha se posicionando na questão militar.

Mudança reflete acirramento entre Coreias do Norte e do Sul e tensão com a China

Segundo Bárbara Mendes, o Japão viu a necessidade de ampliar sua defesa por conta da expansão da China, que tem questões territoriais com o Japão no mar do Sul da China relativas à exploração de recursos.
"Basicamente, em relação à China, a instabilidade é referente às ilhas de Senkaku (ou de Diaoyu, se for em chinês), que é uma região de ilhas entre os dois países em que, até então, não tinha nenhum interesse, não pertencia a nenhum dos dois. Até que se descobriram recursos energéticos, aí a coisa tomou outra forma. Os dois países começaram a disputar [sobre] quem é o dono."
Porém a especialista destaca que a questão do Japão com a China não é a mais grave. Isso porque ambos dependem da economia um do outro.

"O Japão depende da economia chinesa, e a China depende também do mercado japonês e da importação de peças etc. Então isso configura o que a gente chamaria de uma 'instabilidade estável'. Ela é instável porque tem essa movimentação, vira e mexe tem uma troca de mísseis, de balas. Mas aquilo muito dificilmente vai escalar para algo maior", explica Mendes.

Segundo ela, a mudança na postura militar do Japão tem como base a nuclearização da Coreia do Norte.
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"A clara movimentação, os exercícios militares, os lançamentos de mísseis da Coreia do Norte e o empenho em desenvolver armas nucleares trazem uma grande instabilidade, uma grande insegurança para a região, principalmente para o Japão. Porque ele é um dos principais aliados americanos na região", diz Mendes.

Ela acrescenta que, pelo fato de o Japão ser um grande aliado dos Estados Unidos na região, um míssil eventualmente disparado pela Coreia do Norte contra o território japonês poderia significar um míssil disparado contra os EUA.
"Então, da perspectiva japonesa, ele [o Japão] está dentro da Constituição, dentro da lógica dessa Constituição. Não está fazendo nada de mais, está tentando se proteger de possíveis ameaças externas", diz Mendes.

A ascensão de um novo conceito de autodefesa

Eduardo Munhoz Svartman, professor do Departamento de Ciência Política e dos programas de pós-graduação em Ciência Política e em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), discorda da versão de apenas autodefesa.
Ao podcast Mundioka, ele afirma que "o Japão alega que mantém uma postura defensiva. No entanto essa postura defensiva mudou de caráter".

"O que o Japão está programando adquirir agora com novos sistemas de mísseis implica em uma outra postura. É o que eles estão chamando de 'capacidade de contra-atacar'. O Japão anuncia que vai adquirir mísseis capazes de atingir territórios, não apenas aviões e navios, submarinos que venham a, eventualmente, violar a soberania japonesa, mas que possam atingir o território da Coreia do Sul, da China, da Rússia. Isso, segundo o Japão, caso esses países venham a violar a soberania japonesa."

Ele acrescenta que o nome dessa estratégia é "dissuasão convencional".
"Ou seja, a postura japonesa deixa de ser meramente defensiva e passa a ser uma postura de dissuasão convencional. Ao adquirir armas capazes de atingir o território dos países que o Japão considera ameaças potenciais, ele está dizendo 'Olha, não me ataquem, porque eu também posso atacar vocês'. É diferente da postura anterior, que dizia 'Não me ataquem, porque eu posso me defender'."
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Questionado sobre se o aumento no orçamento de defesa do Japão terá algum efeito imediato na conjuntura interna do país ou mesmo no cenário global, Svartman destaca que, embora a nova estratégia já esteja em curso, os efeitos somente serão mensurados entre cinco e dez anos.
"A partir deste ano de 2023 começa o crescimento progressivo, ou seja, não é de uma hora para outra que eles vão dobrar o orçamento de defesa. Mas começa uma série de reformas no que eles estão chamando de arquitetura de defesa e segurança do Japão. Esse plano visa a uma primeira etapa de cinco anos, na qual ele vai ter uma nova revisão, e a uma segunda etapa para daqui a dez anos", diz o especialista.
Ele acrescenta que a mudança na postura militar do Japão não é diferente do que está ocorrendo em outros países.
"A distribuição do gasto militar está mudando. Ou seja, é possível que o Japão venha a ser o terceiro país do mundo com maior gasto militar? Sim. Mas vários países europeus também estão aumentando seus orçamentos de defesa. Então é possível que essa equação mude, mas representa que o Japão, cada vez mais, se torna um país normal, no sentido de que ele sai daquele estatuto que ele ocupava desde o fim da Segunda Guerra Mundial, de um país que está sob a proteção dos EUA, e passa a ser como um ator, com todas as características dos atores internacionais que se comportam como potência, com um grande orçamento de defesa", diz Svartman.
Svartman finaliza afirmando que a expansão no orçamento do Japão na busca pela individualidade como Estado também vai abranger os campos de pesquisa, de diplomacia e de atuação nos organismos internacionais.

"Tudo isso caracteriza o comportamento das grandes potências, agora também com um orçamento de defesa e uma capacidade de projeção de poder que antes não tinha. Então, de certa maneira, o Japão vai se normalizando enquanto uma potência como outra qualquer."

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