Eventos que marcaram 2023 e previsões para 2024

Para analistas, EUA encolheram na geopolítica global em 2023, enquanto Rússia e China se destacaram

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas destacam que o principal marco de 2023 no que diz respeito à geopolítica foi o declínio dos Estados Unidos e do Ocidente como um todo, e a ascensão do Sul Global, liderado por Rússia e China.
Sputnik
O ano de 2023 ficou marcado por um processo de mudança na geopolítica global, com antigas organizações internacionais sendo questionadas e pela ascensão de novos atores globais.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas explicam quais foram os grandes vencedores na geopolítica neste ano e quem foram os perdedores, além de apontarem fatos que marcaram os últimos 12 meses.
Para Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor, youtuber, fundador da Universidade Virtual do Vassoler e doutor em letras pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University (EUA), o ano de 2023 foi marcado por um processo de reorganização de eixos, onde os EUA foram os maiores perdedores.
Segundo ele, a cadeia de eventos vivenciada hoje, com o conflito entre Rússia e Ucrânia, a ofensiva truculenta de Israel na Palestina e o aumento das tensões no mar do Sul da China, remete a um processo iniciado no ano de 2021, com a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão.
"Eu gostaria de retornar a 2021, porque aquela é uma sinalização importante de um início de colapso da dominação inequívoca dos EUA no mundo. Porque os EUA só saíram do Afeganistão porque o custo político-econômico da saída do Afeganistão não era mais passível de ser suportado", explica Vassoler.
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Ele acrescenta que os EUA "se arrogam o papel de maior democracia do mundo", mas o país, na verdade, é sustentado pelo lobby privado, em especial o da indústria de armas.
"Eu só posso falar em democracia nos Estados Unidos se eu esquecer historicamente e socialmente o que é a democracia de fato. Os Estados Unidos são uma plutocracia dominada pelo complexo industrial, financeiro e militar", afirma o especialista.
Para ele, o fato de o lobby da indústria das armas não ter conseguido sustentar a permanência dos EUA no Afeganistão, que durou 20 anos, "é um sinal bem interpretado pelo eixo do Pacífico, por China e por Rússia, de que os Estados Unidos não têm mais sua estrutura de manutenção".
"Isso não significa que [os EUA] ainda não sejam a maior economia do mundo, mas não têm mais a fatia do bolo econômica, geoestratégica e geopolítica para manter essa dominação inequívoca."
Vassoler lembra de um discurso do presidente russo, Vladimir Putin, feito em 2007, em Munique, Alemanha, na presença de altos mandatários da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), no qual afirmou que a dominação unipolar e inequívoca dos Estados Unidos havia chegado ao fim. "Ele foi ironizado, satirizado, mas deu um aviso. Não à toa, um ano depois, [Putin] mandou tanques lá para a Geórgia."
O especialista destaca que a expansão da OTAN observada desde meados da década de 1990, contradizendo aquilo que os Estados Unidos haviam prometido a Mikhail Gorbachev, quando presidente da União Soviética, provocou a reação da Rússia.
"O pessoal fala que o Gorbachev tinha que ter pedido uma assinatura dos EUA, que o James Baker [secretário de Estado dos EUA à época] prometeu, apalavrou que os EUA não se expandiriam para além da Alemanha Ocidental, [por meio da] OTAN. Gente, se os Estados Unidos tivessem assinado alguma coisa, eles respeitariam alguma coisa? Não. Isso teria feito alguma diferença? Eles expandiram a OTAN e enfureceram a Rússia quando três ex-repúblicas soviéticas, os países bálticos, a Letônia, a Lituânia e a Estônia, em 2004, entraram para a OTAN."
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"A questão é a seguinte: existe essa contraposição. Os EUA veem a Rússia como adversário militar, mas o grande adversário dos Estados Unidos geoeconomicamente é a China. E essa aliança forjada entre Rússia e China […] é um fato para mudar o cenário geopolítico do mundo, tão importante quanto o que aconteceu no pós-Segunda Guerra", acrescenta.

Por que a China está se destacando?

Vassoler afirma que o fortalecimento geopolítico e econômico da China é tudo o que os EUA não desejam. Porém esse cenário vem se consolidando, em grande parte pela aliança entre Moscou e Pequim.
"Dado esse inimigo comum para China e Rússia, os EUA, [Moscou e Pequim] se unem em uma aliança militar e econômica, e a China tem esse restabelecimento das Rotas da Seda. […] A China vai patrocinando infraestrutura em vários países, e os EUA não querem a expansão do fortalecimento econômico chinês com esses patrocínios — que, obviamente, depois cobram seus preços com os empréstimos bancários e tudo mais — porque está aumentando a fatia do bolo do PIB mundial que os chineses abocanham."
Ele lembra que a China, que na década de 1980 tinha o tamanho da economia brasileira, hoje já é vista se aproximando pelo retrovisor dos EUA.

"Já está começando a chegar àquele ponto cego do retrovisor do qual você não consegue mais ver quem está atrás de você, que já está te passando."

Vassoler afirma que a China hoje, assim como os EUA, possui as chamadas plataformas-Estado, "que são as grandes plataformas que fazem a mediação de todas as nossas transações hoje em dia".
"Só a China e os EUA têm essas plataformas. Eu posso falar, por exemplo, do Alibaba, da Huawei e aí, obviamente, as que a gente mais conhece aqui no Ocidente, o Facebook, o Instagram [estas plataformas proibidas na Rússia por extremismo] e o próprio YouTube."
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Ele argumenta que atualmente "a China tem um potencial de ciberguerra com essas plataformas, com uma compilação de grandes dados que faz frente aos Estados Unidos".
Segundo o especialista, todos esses fatores apontam uma mudança no eixo geopolítico global, que contou também com a resiliência econômica da Rússia após as sanções impostas pelos EUA e pela Europa no contexto do conflito ucraniano, recebida com surpresa pelo Ocidente.

"A Rússia se voltou cada vez mais para o eixo do Oriente Médio, da Índia, do Paquistão e da China, sobretudo. A economia russa não colapsou. Existem declarações de altos mandatários das Forças Armadas e da inteligência ucraniana dizendo: 'Olha, a contraofensiva já era, essa forma de recrutamento aqui está colapsando e a Ucrânia já não tem tropas'. Então é uma admissão de que a Ucrânia não vai ter condições de tocar essa guerra adiante."

Nesse contexto, Vassoler acrescenta que "os EUA roubaram o gás da Rússia". "Eles tomaram o mercado de gás e fornecem gás, o liquefeito, 30% mais caro à União Europeia."

Declínio do Ocidente como espaço de influência global

Analúcia Danilevicz Pereira, especialista em relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma considerar que os principais eventos de 2023 refletem processos de mudanças importantes iniciadas há 30 anos, a partir do final da Guerra Fria.

"Mas eu acho que o que nós temos, assim, de mais marcante em termos mais amplos é uma espécie de declínio do Ocidente como um espaço de poder e de influência global. Nós tivemos inúmeros eventos que vão revelando essa nova realidade internacional."

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Pereira destaca, em especial, os eventos observados em países do continente africano.
"Nós observamos mudanças muito importantes no comportamento político, no posicionamento desses países, no padrão de realinhamento internacional que esses países vêm assumindo e que nos mostram justamente a importância de países que vêm assumindo uma condição, vamos dizer assim, de referência para um enorme espaço mundial que outrora chamávamos de Terceiro Mundo", explica a especialista.
"Me refiro ao comportamento internacional da Rússia, ao papel que a China vem desempenhando também, estabelecendo uma série de conexões econômico-comerciais e político-diplomáticas que vão oportunizando condições novas para Estados mais frágeis ou com menos capacidade estatal. Enfim, que conseguem, agora, se libertar das amarras neocoloniais de exploração dos seus recursos, das suas capacidades."
Ela acrescenta que a Índia também vem se projetando como país importante, o que, segundo ela, sinaliza claramente a importância do BRICS nessa nova configuração internacional que vem se constituindo.
Analúcia afirma que a China, nesse contexto, vem desempenhando um papel fundamental, especialmente a partir de 2013, "com a reinauguração de uma via de conexão mundial que é a chamada Nova Rota da Seda".

"Para mim, esse é o foco e é o grande problema. Ou seja, a China vem conduzindo a reestruturação de um enorme espaço territorial, mas não só. Também tem as suas vias marítimas, vamos dizer assim, que interligam não só o espaço asiático, mas também o espaço asiático ao espaço africano, ao espaço europeu e também ao espaço americano."

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A especialista argumenta que essa expansão de conexão da China, de Pequim à América do Sul, vem desempenhando um papel importante e decisivo "no sentido de uma reconfiguração internacional".
"E isso, evidentemente, vai produzindo uma série de conflitos, especialmente em relação ao antigo polo de poder internacional, que é o Ocidente."
A analista afirma que não pode deixar de citar também o papel da Rússia nessa nova configuração geopolítica global.
"Porque a Rússia acaba por fazer algo que os chineses não se dispõem a fazer. Esses conflitos a que eu me refiro, que são resultantes, no final das contas, de uma guerra econômica que vem acontecendo. Os russos têm se disposto também a apoiar esses países afro-asiáticos no que diz respeito às questões securitárias", explica.
"Então eu diria que são os dois grandes polos hoje que têm uma influência muito importante em 75% do planeta, se nós considerarmos que os outros 25% compõem esse chamado mundo ocidental."
Nesses dois polos, diz, "um está em ascensão e com vitalidade, outro, em declínio e, evidentemente, com deficiências muito grandes, que se revelam em uma estratégia um tanto quanto desencontrada".

"Porque os Estados Unidos e as instituições internacionais ocidentais, que evidentemente existem para gerenciar essas tentativas de estabelecimento de ordem internacional por parte do Ocidente, têm demonstrado que são agentes desestabilizadores, são produtores de instabilidade internacional. Ao passo que a China, e isso também é um movimento da Rússia, busca produzir estabilidade internacional", destaca.

BRICS seria um contrapeso à dominância global do Ocidente?

A expansão do BRICS e sua ascensão em defesa dos interesses do Sul Global também foi um assunto bastante comentado em 2023.
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Questionada sobre se o grupo conseguiu se consolidar como um contrapeso ao Ocidente, Analúcia diz considerar que esse não é o objetivo do BRICS.
"Acho que o BRICS não se constitui como um bloco. Eu acho que nós temos ali uma agremiação, por assim dizer, de países que têm interesses em comum, especialmente no que diz respeito a essa grande questão, ou seja, a necessidade de relações. E aí eu vou partir para o ponto de vista econômico, de uma nova ordem econômica que diminua os níveis de desigualdade internacional."
Ela acrescenta que, ainda em 2023, o mundo precisa lidar com questões relacionadas ao colonialismo, à ocupação territorial e ao neocolonialismo.

"Ações políticas extremamente nocivas à capacidade de desenvolvimento de Estados e sociedades. Os conflitos, eles não são obra de outra coisa senão desses níveis de desigualdade que existem no mundo, dos níveis de oportunidade que os países têm. Então eu acho que o BRICS se coloca como um agrupamento de países que pautam coletivamente temas que são de interesse coletivo."

Ela diz que a tendência para os próximos anos é que o BRICS cresça ainda mais, contribuindo para o fortalecimento regional em diferentes continentes.
"Que ele vá comportando outros países que tenham justamente uma posição e uma visão convergente que possam ter algum nível de influência sobre as suas regiões."
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