Panorama internacional

Minando a concorrência: como a pressão estrangeira tenta travar o avanço tecnológico do Brasil

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que o Brasil tem potencial para se tornar líder em pesquisas científicas e desenvolvimento tecnológico, mas essa capacidade permanece estagnada por elemento geopolítico.
Sputnik
O Brasil é lar de uma ampla gama de pesquisadores capacitados que atuam em centros de pesquisas em universidades, que poderiam fazer do país líder no desenvolvimento de novas tecnologias.

Como está a tecnologia no Brasil atualmente?

Um bom exemplo disso é o ônibus movido a pilhas de hidrogênio, lançado pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ).
O ônibus libera na atmosfera vapor d'água, em vez dos poluentes gás carbônico e óxido de enxofre, e teve o primeiro protótipo lançado em 2010, após cinco anos de pesquisa. Porém, o primeiro protótipo pré-comercial do ônibus só foi lançado em 2017, e ainda não foi popularizado.
Em contraponto, a Europa, que ambicionava a tecnologia para acelerar a descarbonização e levou mais tempo para desenvolvê-la, passou à frente do Brasil e começou a popularizar a tecnologia este ano, colocando nas ruas ônibus movidos a hidrogênio similares ao desenvolvidos no Brasil.
A Sputnik Brasil conversou com especialistas para entender quais são os gargalos que impedem que as tecnologias produzidas em universidades brasileiras sejam absorvidas pelo mercado e popularizadas de forma a aprimorar a vida em sociedade e trazer ganhos para a economia como um todo.

Qual é a posição do Brasil no desenvolvimento tecnológico?

Para o economista Fábio Sobral, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), um dos principais entraves ao desenvolvimento tecnológico é que "as empresas do Brasil, devido à formação do mercado brasileiro, têm uma forte intervenção de corporações internacionais". Isso faz com que essas empresas comprem tecnologias de fora de suas matrizes.

"Essa é uma das primeiras razões por que a tecnologia interna brasileira não é aproveitada. O segundo motivo é que elas [empresas] já querem tecnologias que tenham economia de escala, ou seja, […] produzidas em grande quantidade. E isso impede que elas arrisquem, vamos dizer assim, tecnologias locais que estão começando."

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Somado a isso, Sobral acrescenta que há um forte componente político de países, como os Estados Unidos, que "incentivam fortemente que suas empresas dominem o desenvolvimento tecnológico".

"Há certo bloqueio. É interessante politicamente que essas tecnologias novas não sejam desenvolvidas nos países concorrentes dos Estados Unidos, como o Brasil. Então há certo bloqueio político em relação à aplicação dessa tecnologia brasileira, é um elemento geopolítico."

Questionado sobre como as tecnologias desenvolvidas localmente poderiam ser aproveitadas internamente, Sobral afirma que fariam uma enorme diferença "tornando, inclusive, os setores econômicos mais integrados".
"Você não teria só o processo produtivo dos bens finais. Você teria um processo produtivo que integra cadeias. Isso é o que um grande pesquisador brasileiro, economista, o professor [Luiz Carlos] Bresser-Pereira chama de economia complexa. Você tornaria essa economia mais complexa, com diversas camadas de aproveitamento tecnológico, de integração produtiva. Isso produziria uma evolução da capacidade de desenvolvimento. Então o que está em jogo mesmo é o desenvolvimento econômico. Não interessa [a determinados países] que o Brasil se desenvolva nesse patamar, porque o desenvolvimento leva à concorrência, leva à independência das visões políticas, leva a um distanciamento em relação às determinações dadas nos centros geopolíticos principais."

Qual o poder das empresas multinacionais?

Sobre o exemplo do ônibus movido a pilhas de hidrogênio produzido pela Coppe-UFRJ, Sobral aponta para a pressão de montadoras estrangeiras.
"Acho que a grande questão é: você tem uma enorme concorrência hoje, por exemplo, entre carros elétricos chineses e carros elétricos europeus, e isso leva até a medidas protecionistas por parte da União Europeia [UE]. Dessa forma, é preciso também que outros centros de concorrência se desenvolvam. O Brasil seria um desses centros de desenvolvimento tecnológico concorrentes dos produtos norte-americanos e dos produtos europeus. Então há um bloqueio das empresas. Já que as montadoras brasileiras são estrangeiras, são multinacionais, elas vão privilegiar os centros tecnológicos das suas matrizes."
Nesse contexto, ele aponta que a China desenvolveu uma boa forma de proteger as empresas durante seu processo de industrialização ao criar uma lei que regula a entrada de empresas estrangeiras no país, obrigando-as a ter uma sócia chinesa, algo que não aconteceu no Brasil.

"As empresas [estrangeiras] se comprometiam num percentual muito alto a reinvestir os lucros obtidos na China. Então […] esses fatores permitiram a capacidade de reinvestimento de inovação muito alta. Hoje a China é o principal país no registro de patentes. […] essa [escolha] foi central, foi uma escolha política, um processo de controle político dessa capacidade de inovação."

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Qual o papel do Estado brasileiro no tema da inovação?

Fábio Sobral destaca que no mundo todo existe "uma definição clara de que o poder de intervenção do Estado é central para a capacidade de inovação".

"Existe uma pesquisadora chamada Mariana Mazzucato, que escreveu [o livro] "O Estado empreendedor", e mostra que, inclusive nos Estados Unidos, em todas essas tecnologias que nós achamos hoje muito comuns, a presença do Estado foi central em mais de 90% para que elas existissem. Então é uma escolha política pelo desenvolvimento. No Brasil, os processos políticos são dominados a partir dos interesses de fora, e isso determina um processo de dependência e subserviência local."

Como consequência, o Brasil acaba comprando tecnologias mais caras, provenientes de outros países ou, mesmo, já superadas e obsoletas.
"Isso tem enormes malefícios. Por exemplo, você pode usar automóveis que têm uma maior emissão de dióxido de carbono, emissão de gases e efeito estufa, você continua a usar no Brasil. Ou a usar, por exemplo, venenos que já foram proibidos na UE. Então isso, além de ser mais caro, traz maiores danos ao meio ambiente e às pessoas, traz problemas de outras naturezas, afetando inclusive o sistema de saúde. Nós acabamos gastando muito no sistema de saúde pelo uso dessas tecnologias mais poluentes."
De acordo com o economista, a falta de desenvolvimento tecnológico afeta a economia como um todo, por impedir a criação de diversas camadas produtivas.

"Você vê o caso do jato Gripen que o Brasil compra da Suécia. Como houve um acordo, uma cláusula de repasse da tecnologia, isso acaba criando uma série de empresas que vão oferecer componentes internos do Gripen. Ele tem um grau de nacionalização e de independência da indústria local, inclusive com as encomendas posteriores sendo montadas em fábrica brasileira. Então você cria uma série de empresas associadas a um produto inicial, e essa associação de empresas cria todo um setor em camadas, como se fosse um prédio."

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Ele acrescenta que essas camadas são essenciais para que um país deixe de ser uma economia frágil e subserviente.
"Por exemplo, se você tem uma economia que é exportadora de commodities agropecuária e mineral, você tem como se fosse uma casa de pavimento térreo em que […] exporta os produtos e aquilo não gera outros andares. Uma economia industrial tecnológica acaba criando novos andares, que vão se complementando e vão, assim, elevando tanto a complexidade da economia como o seu próprio PIB [produto interno bruto], a capacidade de emprego, a exigência de mão de obra qualificada. Vai fazendo com que, inclusive, a educação tenha que se adequar a essas necessidades, a essa demanda. Então afeta todos os ramos da vida de um país. Sem isso, nós continuamos um país frágil, subserviente, dependente e geopoliticamente dominado por forças externas."

Universidades e políticas de incentivo à inovação tecnológica no Brasil

Em entrevista à Sputnik Brasil, Esteban Clua, professor do Departamento de Ciência da Computação e Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), chama atenção para a falta de infraestrutura e financiamento às pesquisas científicas.
"Na universidade, de maneira geral, nós somos muito cobrados pela pesquisa em termos de publicações, de papers, coisas que são muito importantes para o desenvolvimento da ciência. Porém, para um protótipo, uma invenção se tornar um produto que possa vir a ser comercializado ou usado na indústria, existe uma lacuna ainda. Porque precisa validar, testar, fazer toda a questão de viabilidade econômica daquele produto. Coisas que, para uma universidade ou para um pesquisador, acaba que já não é muito o escopo dele. Muitas vezes, nós não temos, nos nossos laboratórios ou nos nossos recursos de financiamento, dinheiro, infraestrutura suficiente para a gente transformar um protótipo, uma ideia, uma invenção, num produto que possa vir a ser adotado pela indústria."
Ele acrescenta que, em outros países, "essa lacuna, vem sendo muito bem desenvolvida, com muitos financiamentos, e até a aproximação das empresas, ou da indústria, com as universidades".
"É nitidamente muito mais forte do que no Brasil. Quando você está no Brasil, você vê uma presença muito tênue, muito fraca, muito tímida das indústrias, das empresas dentro da universidade, financiando, apoiando, colocando gente dentro. Isso [essa aproximação] é essencial para que a gente possa cobrir essa ponte que existe entre um protótipo e um produto industrializável."

Qual o papel das universidades na inovação?

Segundo Clua, no Brasil, as empresas não enxergam as universidades como locais importantes para o desenvolvimento tecnológico de maneira geral. "Elas enxergam uma universidade como um lugar para as pessoas estudarem, aprenderem, se formarem, depois virem aqui trabalhar [nas empresas]."
No entanto, ele afirma que há algumas ações importantes do governo de fomento ao setor, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

"Já têm sido feitas várias ações para tentar aproximar as empresas das universidades. Por exemplo, existe a Lei do Bem que, na minha opinião, é muito mal explorada. A Lei do Bem é uma lei muito importante do governo […]. é uma lei que dá uma série de isenções fiscais para empresas que se aproximam, que fazem pesquisa e que, de alguma maneira, também trazem para dentro de si algum tipo de entrelaçamento com ICPs, que são os centros de ciência e tecnologia."

Ele acrescenta que existe também o Centelha, "um programa do governo para incentivar startups dentro da universidade". "Não é só dentro do governo. Também nas universidades tem um projeto muito legal, que está crescendo muito, que são as bolsas de pesquisadores na empresa. São bolsas de pós-doutorado, mas não aquelas típicas bolsas de pós-doutorado, de doutores, de pré-doutorandos, que ficam na universidade. São os que, obrigatoriamente, estão trabalhando como pesquisadores em alguma empresa junto com a universidade."

Petrobras e a tecnologia

Clua também aponta o importante papel que a Petrobras tem no fomento às pesquisas científicas, aportando bastante recursos para universidades.

"Em todas as grandes universidades você vai ver prédios que foram construídos pela Petrobras, centros de pesquisa da Petrobras. A Petrobras é um exemplo legal, que funciona bem. E isso acontece principalmente por causa da lei que exige que as indústrias de energia que têm lucro a partir de determinado valor têm que aportar 1% do lucro em pesquisa", diz o professor.

A fuga de cérebros do Brasil

Clua finaliza apontando para a fuga de talentos vivenciada pelo Brasil nos últimos anos, em decorrência da falta de incentivo às pesquisas.
"Tem bastante fuga de talentos. Sem ficar falando nomes, mas, realmente, durante alguns governos, a gente teve uma acentuação dessa fuga. É nítido. Eu posso dizer que no meu departamento nós somos mais ou menos 65 pesquisadores. No Instituto de Computação, nos últimos cinco anos, perdemos uns seis pesquisadores, daqueles de topo, que foram para a indústria lá fora. Por quê? As razões, obviamente, não são tão triviais para colocar em uma palavra só, mas é principalmente pela falta de recursos. Tem horas que tem, tem horas que não tem nada, e assim você não consegue se planejar. Porque muitas pesquisas são longas, […] demandam muitos anos. Pesquisa não é uma coisa imediatista, precisa de planejamento."
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