Panorama internacional

Disputa pelo 'coração do mundo': Eurásia e sua centralidade no jogo de poder entre grandes potências

O território da Eurásia (que inclui Ásia, Europa e também o Oriente Médio) possui ligação direta com as disputas por poder hoje em curso no mundo.
Sputnik
Eventos como a formação da aliança sino-russa durante os anos 2000, a criação da Organização para Cooperação de Xangai e o cerco do Ocidente à Rússia e à China estão intimamente relacionados com a busca por predominância nessa que é a região mais importante do planeta.
Ainda durante os anos 1990, o cientista político americano Zbigniew Brzezinski, em sua obra "O Grande Tabuleiro de Xadrez", já havia destacado a centralidade da Eurásia no plano geopolítico internacional, quando escreve que a "Eurásia é o lar da maioria dos Estados politicamente assertivos e dinâmicos do mundo" e que "todos os pretendentes históricos ao poder global tiveram origem na Eurásia".
Como exemplo de países que visam atingir uma espécie de hegemonia regional, Brzezinski citou Rússia, China e Índia, que hoje são membros do BRICS e ao mesmo tempo da Organização para Cooperação de Xangai, representando uma séria ameaça à primazia política e econômica americana.
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Fato é que essa relevância geopolítica destacada por Brzezinski em finais do século XX continua claramente em voga em tempos atuais, dada a atenção contínua que a Eurásia tem recebido a nível global. Aliado a fatores como: numerosas populações, alto crescimento econômico e presença de recursos naturais abundantes, a região da Eurásia mais do que nunca detém o potencial de ditar os rumos da política mundial.
Questões como a crise no Leste Europeu (em especial o conflito na Ucrânia) e provocações no Sudeste da Ásia (envolvendo as tensões políticas em torno de Taiwan) apenas ratificam a atenção que Eurásia tem recebido nos noticiários e na academia em todo o mundo.
Nesse contexto, conceitos como Heartland e Rimland, oriundos da geopolítica de meados do século XX, também voltaram a ganhar importância. Heartland, por exemplo, foi um termo cunhado pelo geografo inglês Halford Mackinder em sua obra "O Pivô Geográfico da História" (de 1904), cuja tradução literal para o português equivaleria a "terra-coração", por representar a região central da grande massa terrestre eurasiática.
Por "terra-coração" (Heartland) Mackinder referia-se sobretudo ao Leste Europeu e à porção mais ocidental do Império Russo, que considerava o núcleo geopolítico do planeta, em função de seu potencial territorial, econômico e militar. Dessa forma, o controle do Heartland seria fundamental para qualquer potência que pretendesse empreender um projeto de dominação global, como era o caso à época dos ingleses.
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Mackinder defendia o famoso pensamento de que: quem dominasse a Europa de Leste, dominaria o Heartland; quem dominasse o Heartland, dominaria a Eurásia (que o autor também chamava de Ilha-Mundo); e quem dominasse a Eurásia, dominaria o mundo. Isso se deve ao fato de a região, como mencionado anteriormente, possuir bastante abundância em recursos naturais, grandes populações e uma posição (geo)estratégica importante entre a Europa e a Ásia.
Prova disso é que atualmente novas disputas de poder entre as grandes potências têm tido lugar dentro do Heartland, conjuradas por (re)desenhos territoriais no continente, como a reunificação da Crimeia à Rússia em 2014 e a recente adição de quatro novas entidades políticas à Federação da Rússia em setembro do ano passado.
Além do mais, o conflito russo-ucraniano iniciado em fevereiro de 2022 atingiu uma magnitude pouco antes imaginável em decorrência da participação de outras potências importantes no conflito, como Estados Unidos e União Europeia (o chamado Ocidente coletivo). Em verdade, os interesses geopolíticos em torno da Ucrânia por parte do Ocidente são tão grandes que Kiev vem recebendo suporte militar da Europa e sobretudo de Washington já desde as primeiras semanas de combate.
Tal apoio tem sido fundamental para a Ucrânia, ainda que incapaz de almejar qualquer perspectiva de vitória contra os russos. Por outro lado, Moscou conta com parcerias políticas importantes na Eurásia, em especial com China e Índia, países com os quais a Rússia mantém relações próximas.
Outra das principais dinâmicas hoje em curso na Eurásia diz respeito à cooperação sino-russa como garante da estabilidade da Ásia Central, evitando que a região se transforme num foco de instabilidade política, dada sua importância estratégica para ambos os atores.
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Afinal, os Estados Unidos (assim como os ingleses no passado) detêm especial interesse na Ásia Central por enxergar nesses países uma espécie de zona de contenção na Eurásia, onde Washington pode atuar para minar os interesses tanto da Rússia como da China.
Ora, para os americanos continua valido o pensamento do teórico geopolítico Nicholas Spykman, que em meados do século XX defendia a tese de que: eram as regiões periféricas – ou limítrofes – da Eurásia (o chamado Rimland) que representavam o verdadeiro epicentro do mundo. Dentro dessa área limítrofe – Rimland – encontram-se por exemplo o Sul do Cáucaso, partes da Ásia Central, o Sul e o Sudeste asiáticos, assim como o Japão e as demais ilhas do Pacífico.
Spykman, portanto, realizou uma inversão clara com relação a Mackinder, afirmando que: "Quem controla o Rimland, domina a Eurásia. Quem domina a Eurásia, controla os destinos do mundo". Disso resultou a política expansionista da OTAN e sua aproximação com países como a Geórgia nos anos 2000, as parcerias estadunidenses no Leste Asiático e no Pacífico, assim como os investimentos americanos e europeus na região da Ásia Central.
Em resumo, desde a Guerra Fria e mesmo após o seu término, o Rimland serviu ao Ocidente como espaço de contestação, primeiro à União Soviética e depois à Federação da Rússia, por meio sobretudo da expansão da OTAN no continente. Como resultado, ao suscitar o interesse da Ucrânia em fazer parte da Aliança Atlântica, Washington e seus aliados concorreram para ampliar as tensões com Moscou a ponto de provocarem o início da operação militar especial russa em 2022.
O Rimland também serviu ao Ocidente como espaço de contestação à China pós-revolução comunista, como demonstrado pelas alianças dos Estados Unidos com o Japão, Coreia do Sul e, mais recentemente, com a Austrália (através do AUKUS), Nova Zelândia e também a Índia por intermédio do Quad.
Dado o alto valor estratégico da Eurásia é que potências extrarregionais como os Estados Unidos (e o Reino Unido antes deles) têm se empenhado para influenciar os processos políticos na região, manifestado isso pelo apoio financeiro e militar americano à Ucrânia e pelas provocações à China em torno da questão envolvendo Taiwan.
Além disso, demais atores de peso como Índia, Irã, Turquia, Arábia Saudita, Paquistão e outros também vêm acompanhando o andamento desses jogos de poder, ao mesmo tempo em que procuram defender suas posições e interesses particulares no continente. É por isso que, sem sombra de dúvidas, a Eurásia é hoje o coração da geopolítica global. Certamente, o coração mais disputado do mundo.
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.
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