Panorama internacional

Como a América do Sul se tornou um porto seguro para soldados do tipo do nazista aplaudido no Canadá

Após a repercussão internacional ao ter sido homenageado no Parlamento do Canadá, o veterano do Exército nazista Yaroslav Hunka, de 98 anos, ganhou os holofotes da imprensa mundial. Estimativa publicada por uma revista militar canadense diz que o país recebeu ao menos 2 mil egressos das tropas de Adolf Hitler. E a América do Sul também os abrigou.
Sputnik
A Sputnik Brasil conversou com um especialista para entender o porquê de a América do Sul ter sido um reduto de nazistas fugitivos.
Exemplo mais cristalino de como a região acolheu soldados e membros do alto escalão do Partido Nazista é o de Josef Mengele, médico e capitão da SS (Schutzstaffel, força paramilitar do Partido Nazista), que matou milhares de pessoas e dissecou seus corpos.
Suas técnicas eram verdadeiras sessões de tortura porque eram eivadas de extrema crueldade, já que fazia cirurgias e até retirada de órgãos sem anestesia. Ele realizou experimentos em mais de 3 mil gêmeos que chegaram aos campos de concentração nazistas. Somente 200 sobreviveram. Seu apelido era "Anjo da Morte".
Sob ameaça de prisão no final dos anos 1940, ele fugiu para o Paraguai e, em seguida, mudou-se para o Brasil e morou em diversos lugares do interior de São Paulo com ajuda de terceiros. Na década de 1970, mudou sua identidade e usou a do amigo Wolfgang Gerhardt, que havia lhe cedido documentos.
Apesar da miríade de crimes contra a humanidade, Mengele nunca foi preso. Ironicamente, morreu afogado em uma praia de Bertioga, no litoral de São Paulo, em 1979.
Em 1985, a Polícia Federal brasileira, com uma equipe de cientistas forenses de três países, exumou o corpo de Mengele, enterrado em Embu, e concluiu que se tratava do nazista foragido da Justiça por mais de 30 anos.
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'Linhas de rato', colonização, elites, multinacionais e Igreja Católica

Conhecido refúgio de oficiais, cientistas, soldados e colaboradores nazistas, o continente americano recebeu dezenas de milhares de fugitivos da Justiça através de "linhas de rato", ou ratlines, administradas por clérigos da Igreja Católica, empresários de multinacionais, serviços de inteligência dos Estados Unidos, antigos membros do Partido Nazista e elites locais.
Para João Cláudio Pitillo, professor de história e pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas (Nucleas) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a facilidade de estabelecer esses caminhos de rato se deu por uma série de motivos: desde relações culturais próximas por conta da imigração de alemães e italianos nas décadas passadas, à participação das elites locais em partidos de ideologia fascista, laços econômicos de empresas multinacionais e interesses geopolíticos do momento pós-guerra.
"A colonização italiana e alemã foi muito grande nessa região, então o laço cultural se estendeu", afirmou Pitillo. "Essas relações se edificaram a tal ponto de tornar confortável o trânsito de pessoas desses países."
Somado a isso está o fato de que o boom populacional da América Latina só se deu a partir dos anos 1960 — até então o vasto continente tinha uma população pequena, o que "ajudava a disfarçar a presença desses estrangeiros de orientação fascista", dos quais muitos conseguiam documentos e passaportes através dos regimes de António de Oliveira Salazar (1889–1970), em Portugal, e de Francisco Franco (1892-1975), na Espanha.
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'A máquina repressora é emprestada da Alemanha nazista'

O grande cerne, no entanto, da proteção aos nazistas na América do Sul foram as suas utilidades para cumprir "políticas de repressão" sob a nova lógica da Guerra Fria, que, segundo Pitillo, era "ajudar no combate aos movimentos revolucionários e socialistas".

"O [Adolf] Eichmann [um dos maiores organizadores do Holocausto nazista], por exemplo, trabalhava na Volkswagen. Pouca gente na empresa sabia quem ele era, mas a diretoria sabia. A Volkswagen teve uma participação ativa na ditadura do Brasil, inclusive perseguindo funcionários. Ou seja, toda essa máquina de repressão acolheu bem esses fascistas."

Outro exemplo dado pelo historiador é o caso de Nikolaus 'Klaus' Barbie, também oficial da SS.
O nazista teve participação direta nas ditaduras da Bolívia e do Peru, ajudando a organizar os sistemas de repressão desses países, e figurou nas folhas de pagamento da CIA, agência de inteligência dos Estados Unidos.

"Essa máquina repressora é uma máquina emprestada da Alemanha nazista. Ela vai se edificar na França (como pode-se ver em suas ações na Argélia e no Vietnã), na Espanha, em Portugal e principalmente em países como Alemanha Ocidental e Itália. Essa 'cientifização' da tortura, essa expertise que vai acontecer na América Latina como um todo, com os esquadrões da morte, as guardas nacionais, os comandos, as operações encobertas (das quais a mais famosa é a Operação Condor), tudo isso tem relação direta com a escola fascista."

'Muitos ficaram na sombra, mas outros ajudaram a cumprir políticas de perseguição'

Embora o continente tenha recebido milhares de veteranos e colaboradores nazistas, aqueles mais proeminentes pelos seus atos durante e no pós-guerra, como Josef Mengele, Walter Rauff, Franz Stangl, Josef Schwammberger, Erich Priebke, Gerhard Bohne e muitos outros, ajudaram a sustentar outros que preferiam o anonimato, no que foi chamado de "políticas de autoproteção" pelo historiador.

"Josef Mengele, que morre no Brasil e é enterrado com outro nome, tinha uma relação com vários outros alemães que também fugiram no pós-guerra e mantiveram seus laços nazistas."

Outro exemplo é Otto Skorzeny, conhecido como o homem mais perigoso da Europa, que, enquanto refugiado na Espanha franquista, manteve relações com vários países da América Latina através de suas empresas de exportação e importação.
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Integração dos nazistas foi 'leniência ao imperialismo' dos EUA

Assim que terminou, a Segunda Guerra Mundial rapidamente deu lugar a uma nova lógica mundial, e esses fascistas se tornaram parte ativa da Guerra Fria nesse novo mundo.
Segundo o professor, o derrotado lado nazista "jamais iria transitar perto de outros países que tivessem uma discussão mais democrática e de punição ao fascismo mais ampla", comentou.
Os EUA souberam aproveitar a oportunidade, integrando em sua sociedade muitos cientistas, especialmente de foguetes e armamentos, no que ficou conhecida como Operação Paperclip. Para a América Latina e outros países, por sua vez, sobraram especialistas em tortura e repressão, como Klaus Barbie, conhecido como "carniceiro de Lyon".
Outra nação que absorveu muito do sistema de repressão nazista foi a Alemanha Ocidental, ou República Federal da Alemanha, que reabilitou na sua polícia vários ex-membros do nazismo. "O Poder Judiciário que surge na Alemanha Ocidental é todo com juízes do nazismo", afirmou Pitillo.

"Os países foram centralizados por Washington para deixar essa questão do fascismo para lá, pois muitos deles estavam ajudando no combate aos comunistas."

'Sempre se sonhou com o retorno do fascismo'

Outro ponto crucial na história do fascismo e do nazismo na América Latina é a aceitação pelas elites locais da ideologia. O Brasil, por exemplo, contou com o maior partido nazista fora da Alemanha. "Nos EUA até hoje tem organização e partidos nazistas, mas na maior parte dos países da América Latina isso foi proibido por conta da guerra. Mas antes da guerra esses partidos eram legais e tinham um vínculo muito grande com suas matrizes na Europa", destacou Pitillo.
"A elite local que se identificava com o nazismo antes da guerra não deixou de se identificar no pós-guerra, pelo contrário, ela passou a trabalhar de forma secreta. Ela continuou a ajudar essas pessoas, que para eles eram heróis, pessoas importantes, que perderam a guerra mas precisavam de ajuda. E sempre se sonhou também com o retorno do fascismo."
No Brasil, os militares sempre foram contra que Getúlio Vargas entrasse na guerra, apontou o historiador. "Queriam ficar como a Argentina e o Chile, ostentando uma neutralidade que favorecesse a Alemanha".
Ao final da Segunda Guerra Mundial, o governo Vargas deu uma grande anistia aos colaboradores do fascismo e do nazismo. "Isso virou uma página passada na história da América do Sul, porque logo toda a América Latina estava sob o tampão da Guerra Fria. A ideia era combater comunistas", argumentou Pitillo.

"O Brasil foi o país da América Latina que mais sofreu: perdeu mais de 30 navios, perdeu mais de mil pessoas em um afundamento desses navios e mesmo assim nunca se preocupou em fazer uma grande investigação dos apoiadores sobre os apoiados do nazismo e do fascismo."

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