Panorama internacional

Armas nucleares de Paris e Londres preocupariam Moscou com ou sem conflito na Ucrânia, diz analista

Ao suspender a participação russa no acordo Novo Start, o presidente russo, Vladimir Putin, notou a necessidade de controlar os arsenais nucleares de França e Reino Unido. A Sputnik Brasil conversou com especialistas militares para saber se os EUA querem trazer seus aliados para a mesa de negociações e se sobraria uma cadeira para a China.
Sputnik
No dia 21 de fevereiro, durante discurso à Assembleia Federal, o presidente Vladimir Putin anunciou a suspensão da participação da Rússia no acordo Novo Start, o último tratado de controle de armas nucleares em vigor no mundo.
Durante seu anúncio, o presidente russo apontou para o desenvolvimento dos arsenais nucleares de França e Reino Unido, que também constituem ameaças estratégicas à Rússia.
"Na OTAN não há apenas uma potência nuclear, os EUA, também há os arsenais do Reino Unido e da França. Eles estão sendo desenvolvidos e aprimorados. E também são direcionados contra nós", considerou o líder russo.
De acordo com o pesquisador do Instituto Primakov de Economia Global e Relações Internacionais da Academia de Ciências da Rússia (IMEMO RAN, na sigla em russo), Aleksandr Yermakov, a presença de França e Reino Unido nos diálogos de controle de armamentos é uma demanda antiga de Moscou.
Presidente russo, Vladimir Putin faz discurso anual à Assembleia Federal da Rússia, em 21 de fevereiro de 2023
"Essa é uma preocupação histórica de Moscou que remonta à era soviética", disse Yermakov à Sputnik Brasil. "Mas naquela época não era tão grave, porque a diferença entre o arsenal da URSS em relação a França e Reino Unido era muito desproporcional."
No entanto, os arsenais de Moscou e Washington foram reduzidos pela adoção de acordos de controle de armas, diminuindo o desequilíbrio em relação a Londres e Paris.
"Aos poucos a diferença relativa entre os arsenais de EUA e Rússia e os arsenais totais de França e Reino Unido vem diminuindo", considerou Yermakov. "E Londres já declarou ter interesse em aumentar o seu potencial nuclear, enquanto Paris está modernizando o seu arsenal."
O especialista russo ainda lembra que o teto negociado pelo Novo START, que permite que Rússia e EUA mantenham 1.550 ogivas mobilizadas, é considerado o mínimo para que Moscou fique segura em relação aos arsenais de França e Reino Unido.
O presidente russo Vladimir Putin, à direita, observa o presidente francês Emmanuel Macron chegando para uma entrevista coletiva após suas conversas, segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022 em Moscou
"Portanto, mesmo que as relações entre a Rússia e o Ocidente estivessem indo bem, essas questões mais cedo ou mais tarde preocupariam Moscou", declarou Yermakov.

Convocar Londres e Paris

Para o professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, professor doutor Sandro Teixeira Moita, a inclusão dos aliados poderia atender aos interesses de Washington, por legitimar multilateralmente a política norte-americana de controle de armamentos.
"Assim como a administração Obama, o governo Biden reproduz a ideia de trabalhar com seus aliados em questões internacionais", considerou Moita. "Lembremos que muitas ações de Obama, como as operações militares na Síria e na Líbia, contaram com o apoio de Londres e Paris."
A inclusão também reforçaria a posição de Washington, afinal França e Reino Unido "são os países europeus melhor militarmente armados, tanto em termos convencionais, quanto nucleares".
Presidente dos EUA, Joe Biden, durante entrevista coletiva após cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em Bruxelas, na Bélgica, em 14 de junho de 2021
Yermakov revela que, durante as negociações sobre a extensão do acordo Novo START, os EUA "desconversavam, mas não negavam a possibilidade de inclusão de seus aliados no regime de controle de armamentos de maneira categórica".

Inclusão de Pequim?

A eventual inclusão de França e Reino Unido nas negociações sobre controle de armamentos poderia reascender a demanda norte-americana pela inclusão da China nos acordos.
"Durante a administração Trump, os EUA [...] insistiam para que as negociações sobre controle de armas fossem realizadas com a participação da China", disse Yermakov.
A inclusão da China seria tarefa bastante difícil, uma vez que Pequim já declarou não ter interesse nesse tipo de acordo.
Fu Cong, diretor-geral do Departamento de Controle de Armas do MRE chinês, durante coletiva de imprensa em Pequim, China, 4 de janeiro de 2022
Além disso, o arsenal nuclear chinês é muito menor do que os de EUA e Rússia. De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa sobre a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês), Pequim mantém 290 ogivas, enquanto Washington dispões de 6.185 e Moscou de 6.500.
"Para a China entrar, seria necessário que ela se sentisse confortável em relação ao seu arsenal, o que implicaria no seu aumento, para que atingisse um nível correspondente ao Ocidental", acredita Yermakov. "Durante a Guerra Fria aconteceu o mesmo: a União Soviética só se sentiu confortável para negociar com os EUA quando seu arsenal atingiu um nível mais elevado."
Segundo ele, havia a expectativa de que, caso a China aceitasse participar das negociações sobre controle de armamentos, os EUA fariam gestões para que os seus aliados fizessem o mesmo.
Míssil balístico intercontinental (ICBM, na sigla em inglês) nuclear Titan II desativado em silo no estado do Arizona, nos EUA (foto de arquivo)
"Isso no mínimo em relação ao Reino Unido, uma vez que a França tem muito orgulho do seu relativo isolacionismo em temas nucleares [...] e poderia oferecer maior resistência", considerou o especialista russo.
Esse xadrez russo-americano levaria a uma situação inédita, que seria a inclusão de todos os países nuclearmente armados reconhecidos pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) em um único regime de controle de armamentos.
"Idealmente, poderíamos ter chegado a um regime de controle de armas comum a todas as potências nuclearmente armadas reconhecidas como tal pelo TNP e a todos os membros do Conselho de Segurança da ONU", considerou Yermakov.
O especialista ressalta, no entanto, que essa perspectiva é um tanto utópica e de difícil realização, principalmente em um contexto de confronto aberto entre OTAN e Rússia.
Presidente ucraniano, Vladimir Zelensky (à esquerda) sorri para seu homólogo norte-americano, Joe Biden, durante visita à Casa Branca. Washington, EUA, 21 de dezembro de 2022
"O presidente russo tem clareza de que, no contexto atual, dificilmente França e Grã-Bretanha se disporiam a negociar o controle de seus arsenais", considerou Yermakov. "A fala de Putin tem o objetivo de enfatizar que, apesar das demandas do Ocidente em relação à Rússia para que cumpra os acordos de controle de armamentos, os aliados dos EUA não estão dispostos a submeter os seus próprios arsenais a controle."
Durante seu discurso à Assembleia Federal, Vladimir Putin notou que, no início de fevereiro de 2022, a Organização do Tratado do Atlântico Norte emitiu declaração solicitando que a Rússia permitisse inspeções dos EUA em sua infraestrutura de defesa nuclear.
Vladimir Putin, presidente russo, dá discurso em comício-concerto no Estádio Luzhniki, Moscou, Rússia, 22 de fevereiro de 2023
"Não sei como definir isso: é um teatro do absurdo. Nós sabemos que o Ocidente está diretamente relacionado com as tentativas do regime de Kiev de realizar ataques contra nossas bases aéreas estratégicas", declarou o presidente russo.

Fim do controle de armas nucleares?

A suspensão da participação russa no acordo Novo START é mais um passo rumo a um mundo sem controle de armas nucleares.
O processo começou em 2002, com a retirada dos EUA do acordo de controle de sistemas antimísseis e se acelerou na administração Donald Trump, com a saída unilateral de acordos como o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário e o Acordo de Céus Abertos.
Presidente dos EUA, Donald Trump, chega para falar com apoiadores do The Ellipse perto da Casa Branca em Washington, 06 de janeiro de 2021
Como resultado, o acordo Novo START é o último tratado de controle de armas nucleares em vigor no mundo.
"Sem tratados como esse, as potências perdem mecanismos de confiabilidade", considerou Moita. "A potência começa a se isolar e imaginar que o seu inimigo é algo que ele não é."
O especialista brasileiro lembra do caso da Crise dos Mísseis em Cuba, na qual "por um raciocínio completamente distorcido, chegamos a um impasse que poderia rapidamente gerar uma guerra nuclear e o fim da humanidade."
Encontro entre o presidente dos EUA John F. Kennedy e o líder soviético Nikita Khrushchev
Além disso, a falta de diálogo entre Rússia e EUA poderá abrir espaço para que países menores obtenham armas nucleares, considerou Moita.
"Se atores menores verem que Rússia e EUA não estão se coordenando em questões nucleares, se sentirão muito mais livres para adquirir esse tipo de armamento, o que pode gerar uma corrida armamentista nuclear global entre países menores", notou Moita.
Yermakov concorda com a importância do regime de controle de armas, mas considera que a sua atualização era inevitável.
"Não é a primeira vez que ficamos sem um regime amplo de controle de armas – vivemos assim durante as décadas de 60 e 70. Me parece um processo natural que reflete as mudanças internacionais. E o regime que virá depois deste pode ser pior, mas também pode ser melhor. O importante é sobrevivermos até lá", concluiu o especialista russo.
No dia 21 de fevereiro, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou a suspensão da participação da Rússia no acordo sobre armas nucleares Novo START, o último em vigor para controle desse tipo de armamentos. Em entrevistas subsequentes, o presidente russo considerou a inclusão de França e Reino Unido em negociações futuras sobre o tema.
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