Panorama internacional

América Latina precisa diversificar formas de cooperação com a China, dizem analistas

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisaram o aumento da presença chinesa na América Latina e defenderam a ampliação das formas de cooperação com Pequim.
Sputnik
A presença da China na América do Sul e na América Latina é um fato incontestável. Nas últimas duas décadas, o interesse de Pequim por países da região aumentou consideravelmente. Esse interesse é mútuo: prova disso é que a China hoje é a principal parceira comercial de muitos países da região.
Mas o que despertou o interesse da China na América do Sul e na América Latina? Que benefícios Pequim traz para a região? Para responder essas perguntas, as jornalistas Melina Saad e Thaiana de Oliveira, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, conversaram com Renato Ungaretti, mestre em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); e Amanda Harumy, professora de relações internacionais no Centro Universitário Fundação Santo André (FSA), doutoranda em integração da América Latina pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam), da Universidade de São Paulo (USP), e diretora do Instituto Diplomacia para Democracia.
Renato Ungaretti explica que a atual relação "entre China e países da América do Sul e da América Latina como um todo começou no início do século XXI, inicialmente voltada para o comércio".
"Na última década, as relações se aprofundaram por meio dos investimentos e financiamentos da China e por projetos de infraestrutura", explica o pesquisador.
Ele acrescenta que, do ponto de vista da América Latina, a China pode contribuir para enfrentar uma série de vulnerabilidades que os países da região sofrem.

"Ela [a China] é um mercado gigante para as exportações, é a principal parceira da maioria dos países da América do Sul, principalmente Brasil, Chile, Peru, Uruguai e, mais recentemente, Argentina e Chile. A China também pode contribuir para aliviar os gargalos de infraestrutura que a região tem, que são obstáculos ao desenvolvimento de países da América Latina e da América do Sul."

Já do ponto de vista da China, Ungaretti aponta que "há muito interesse em conquistar mercados na América do Sul para suas exportações de produtos de média e alta complexidade".
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"Ela [China] tem interesse em exportar padrões tecnológicos em uma série de segmentos, desde energia renovável até telecomunicações. A China também tem interesse em ter uma relação mais próxima também com os países da região, até como uma forma de contrabalancear a influência que os Estados Unidos têm na região da Ásia-Pacífico."

Questionado sobre quais seriam os gargalos da região, ele aponta "o setor de infraestrutura, a carência em termos de serviço público, acesso a eletricidade e saneamento".
"Muito se fala do caso do Brasil, que tem a questão do Custo Brasil, que prejudica a competitividade da nossa indústria, das nossas exportações", destaca Ungaretti.

"A região tem necessidades de investimentos em infraestrutura que não são geralmente preenchidas, e a China, ao longo das últimas décadas, se propôs a financiar uma série de projetos de infraestrutura de transportes e energia que podem contribuir com o desenvolvimento dos países da região. Financiou, por exemplo, projetos hidrelétricos na Argentina e no Equador."

O pesquisador afirma que "de uma forma ou de outra, as economias da região estão entrelaçadas com a da China", mas alerta que essa realidade gera "um cenário de uma crescente interdependência".
Ele destaca que, embora a China seja uma grande aliada, a região deve "buscar diversificar seus parceiros, seus mercados, atrair investimentos de outras economias e assim preservar margem de manobra". Para isso, segundo ele, também é muito importante a retomada dos esforços de integração, principalmente no continente sul-americano.
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Ungaretti ressalta que a expansão da China pela América Latina se iniciou de forma mais acelerada após as políticas de reforma e abertura no fim dos anos 1970, quando a China gradativamente se tornou uma potência comercial e produtiva. Ela culminou no início dos anos 2000, quando a China ingressou na Organização Mundial do Comércio (OMC). Segundo ele, a partir de então iniciou-se "um crescente envolvimento comercial com os países da região".

"O Brasil, já em 2009, passa a ter na China sua principal parceira, outros países também, rapidamente. De 2001 para 2010, a China passa a qualificar cada vez mais a sua presença na América Latina, com investimentos diretos por parte de empresas chinesas, inicialmente no setor de recursos naturais, depois com uma presença muito forte no setor elétrico."

O pesquisador salienta que, no contexto global, essa crescente parceria entre Pequim e os países latino-americanos gera desconforto em outra parte do continente americano.
"Ainda mais se a gente considerar que, nos últimos anos, houve um acirramento muito forte da competição entre China e EUA. E, evidentemente, os Estados Unidos não se sentem muito satisfeitos com uma presença cada vez maior da China tanto na América do Sul como na América Latina de uma maneira geral."

Relação mais diversa e mais complexa

Para Amanda Harumy, dentro de uma perspectiva comercial, "a economia da América Latina é fundamental para a China, como economia complementar".
"Porque a gente exporta commodities, exporta soja, carne, petróleo, minério de ferro, que são fundamentais para esse desenvolvimento chinês, que é muito acelerado. A China tem 18% do PIB mundial", ressalta a professora.
Ela acrescenta que a economia chinesa movimenta muito a economia da América Latina, que, segundo ela, "já tem, pelo seu histórico, comportamento dependente de exportação de commodities".

"Mas, nos últimos anos, a gente pode dizer que esse processo tem se acelerado e aprofundado com o comércio com a China. A gente tem se desindustrializado e ficado cada vez mais dependente das exportações de commodities."

Harumy explica que "a desindustrialização não é interessante para as economias da América Latina porque gera uma baixa diversificação econômica".

"Isso faz com que o nosso crescimento econômico, o nosso PIB, fique muito vulnerável aos preços das commodities. E os preços das commodities têm uma margem de volatilidade segundo a economia internacional. Quando as commodities estão com um bom preço, que a gente pode chamar o boom das commodities, há um crescimento da balança comercial. Mas em momentos em que os preços das commodities caem, essas economias ficam frágeis. Então não é interessante que a gente deixe a nossa economia totalmente relacionada a isso", explica Harumy.

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Ela acrescenta que a desindustrialização também prejudica o desenvolvimento de outras formas. "A industrialização é muito importante para desenvolver, por exemplo, os salários. Para diminuir as desigualdades sociais na América Latina, é preciso bons salários, e a indústria traz uma mão de obra mais qualificada, com bons salários, ao contrário do que a gente vê no setor do agronegócio, que cada vez mais tem utilizado a tecnologia e [no qual] os salários são baixos."
Ela ressalta que, por esse motivo, é necessário diversificar as cooperações comerciais com a China e investir em transferência de tecnologia.

"A gente precisa deixar a nossa relação contínua cada vez mais diversa e cada vez mais complexa. A gente não desconstrói essa tendência de exportação de commodities do Brasil de uma hora para outra. Precisa de muito investimento em educação, ciência e tecnologia, uma política voltada para a construção de um verdadeiro salto tecnológico, de industrialização", explica Harumy.

Ela argumenta que países da África já mantêm uma relação de cooperação e transferência de tecnologia com a China e explica que, no caso do Brasil, direcionar os esforços para isso é fundamental.

"Quando eu falo de transferência de tecnologia, a gente tem que ter noção de que o Brasil está muito atrasado em relação ao desenvolvimento tecnológico do mundo. Os países do centro, eles estão em uma verdadeira corrida tecnológica, tanto de biotecnologia quanto de tecnologia militar", conclui Harumy.

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