Panorama internacional

A estratégia russa com Lavrov e a 'linha vermelha' entre EUA e China: como foi a cúpula do G20?

Pesquisador e professor da UERJ, Eden Pereira Lopes da Silva explica as relações entre países e os interesses dos líderes que participaram da cúpula do G20, realizada nesta semana, na Indonésia.
Sputnik
Líderes das grandes economias do mundo se reuniram, entre terça-feira (15) e quarta-feira (16), na 17ª reunião de cúpula do G20, em Bali, na Indonésia. Estiveram presentes representantes dos principais atores da geopolítica global, como os presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden, e da China, Xi Jinping.
A Rússia, por sua vez, preferiu designar o ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, para o evento, enquanto o presidente russo, Vladimir Putin, permaneceu em Moscou.
A escolha foi uma estratégia russa contra a midiatização ocidental da ida de Putin e em prol de uma articulação política internacional mais efetiva com Lavrov nos bastidores da cúpula, em meio aos debates sobre o conflito na Ucrânia e nas fronteiras russas.
É o que aponta Eden Pereira Lopes da Silva, professor de história da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a África, Ásia e as Relações Sul–Sul (NiEAAS). O especialista participou do 134º episódio do podcast Mundioka, que foi ao ar nesta quinta-feira (17).
No programa, comandado por Melina Saad e Thaiana de Oliveira, o especialista destrinchou as relações bilaterais entre as principais economias mundiais e os interesses de cada nação relacionados à cúpula.

"Com o foco da mídia ocidental de buscar colocar a Rússia contra a parede, acaba-se gerando a possibilidade de uma ida ser completamente midiática. Mas a ida do Lavrov foi importante. Embora com menos foco midiático, acabou tendo melhores condições de articular", aponta Lopes da Silva.

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov (à esquerda, o terceiro de baixo para cima), e o conselheiro de Estado e ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi (à direita, o terceiro de baixo para cima), participam de uma reunião à margem da cúpula dos líderes do G20, em Bali, na Indonésia, em 15 de novembro de 2022. Foto de arquivo
O especialista lembra que esta não é a primeira vez que Putin deixa de ir ao G20. Ele diz que o G20 tem papel importante na diplomacia mundial, mas muitos países ocidentais, como os próprios EUA e membros da União Europeia, vêm tentando esvaziá-lo para não dar palco a outros atores políticos.
"Boa parte dos países hoje do G20 é alinhada aos EUA. Isso faz os russos enxergarem que a presença deles é importante, mas não relevante para resolver boa parte dos problemas relacionados ao conflito que existe de maneira aberta com os EUA", explica o professor da UERJ.
Sergei Lavrov afirmou, na terça-feira (15), que o Ocidente tentou politizar a declaração final do G20 para passar uma mensagem de condenação da Rússia.
"Temos repetidamente confirmado, por meio das palavras do presidente, que não recusamos negociações; se alguém está se recusando é a Ucrânia. E quanto mais tempo ela recusar, mais difícil será negociar", disse Lavrov.

"Ele [Lavrov] acabou não tendo muito espaço no G20. Não tira muitas fotos, não deu grandes conferências. Ele próprio se predispôs a ir à cúpula para fazer muito mais articulações diplomáticas do que atender a conferências nos temas tratados", indica Lopes da Silva.

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Segundo o analista, em todos os espaços internacionais frequentados por Lavrov, o chanceler busca realizar articulações políticas. No G20, por exemplo, ele conversou com Emmanuel Macron, presidente francês, e Olaf Scholz, chanceler alemão, em busca de canais com os EUA visando a resolução do conflito russo-ucraniano, aponta.

"Rússia esteve lá em um perfil de articulação diplomática. Muitos países no Ocidente veem o G20 como um momento de performance, de colocar-se perante a comunidade internacional. Mas os russos não entendem dessa maneira, e sim como um momento em que devem ser feitas as articulações políticas para resolver os verdadeiros problemas mundiais", diz.

De acordo com o especialista, a diferença de tratamento com relação à cúpula foi exposta em alguma medida por países que participaram, como a própria anfitriã. Ele avalia que a Indonésia indicou que o evento deveria ser palco de mais articulações diplomáticas, com o objetivo de contribuir para o fim das tensões e dos conflitos geopolíticos do momento.
"É notável perceber como a Indonésia teve um papel relevante ao longo deste ano, não só na organização, mas em todas as articulações políticas que ocorreram em torno da cúpula", afirma o especialista, que também destacou a forte presença de países africanos e asiáticos: "A ausência deles nos principais fóruns internacionais de negociação acaba trazendo um efeito de necessidade de reordenamento internacional, acho que isso ficou muito claro com a cúpula do G20."
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China x EUA

Um dos pontos altos da cúpula foi o encontro de Xi Jinping com Biden. A escalada das tensões entre Pequim e Washington, em meio à ascensão econômica chinesa neste século, foi ainda maior neste ano após a visita da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, a Taiwan.
A democrata aterrissou em Taipé no dia 2 de agosto, com caças chineses se dirigindo ao estreito de Taiwan como resposta. Após o episódio, a China deu diversos recados aos EUA para deixarem de interferir em questões do país.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês Wang Wenbin, por exemplo, classificou a ida de Pelosi a Taiwan de uma provocação à China, contrariando a política de "uma só China", já declarada oficialmente pelos EUA.
Durante a cúpula do G20, o presidente chinês instou seu homólogo estadunidense a transformar os compromissos do país com Pequim em relação a Taiwan em ações concretas.
O presidente da China, Xi Jinping (à esquerda), e o presidente dos EUA, Joe Biden, se reúnem à margem da cúpula do G20, em Nusa Dua, na ilha indonésia de Bali, em 14 de novembro de 2022. Foto de arquivo
O líder chinês afirmou que a questão de Taiwan está no "cerne dos interesses centrais da China" e que essa é "a primeira linha vermelha que não deve ser cruzada" nos laços bilaterais entre as nações.

"A China vem ganhando destaque, sobretudo pela expectativa do papel de Xi nas negociações diplomáticas, não só em relação a conflitos, mas em várias outras questões, como a reorganização do modelo econômico mundial e o combate às mudanças climáticas", avalia Lopes da Silva.

Para o pesquisador, realmente a única "linha vermelha" do ponto de vista político e militar entre EUA e China é a questão de Taiwan. Porém, segundo ele, "tudo depende de algo que vá além de palavras, vindo por meio de gestos".

"Os chineses esperam e têm a expectativa de que, para além desses discursos, haja ações práticas na direção de desescalar as relações entre EUA e China", explica o especialista. "Mas viagens como a de Pelosi, provocando abertamente a China, não podem acontecer, nem em alguma medida a formação de blocos militares na área do Extremo Oriente, como está acontecendo hoje."

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Ausência de Bolsonaro

O especialista comentou também a ausência do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que decidiu cancelar sua participação na conferência após ser derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de outubro e não conseguir ser reeleito. Lopes da Silva acredita que essa ausência se deu por vários motivos, mas é principalmente uma consequência do isolamento internacional do atual governo neste momento.

"Primeiro porque ele é isolado internacionalmente hoje, ele não possui articulação ou proximidade com nenhum líder ou chefe de Estado em nenhum país do mundo. Mesmo os mais ou menos próximos — como o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán — acabam não tendo uma aproximação tão grande com o Bolsonaro e também não são personalidades que possuam uma grande relevância internacional."

O professor da UERJ destaca que, embora o peso do Brasil seja importante, a presença de Bolsonaro na cúpula, na atual situação, não faria muita diferença.

"O chanceler brasileiro, Carlos França, foi à cúpula do G20, mas não teve muito o que fazer ou articular, até porque estamos em um momento de transição [...] e vamos repaginar nossa diplomacia", aponta.

Lopes da Silva entende que o Brasil pode ter um papel muito importante diante do cenário de crise global, em especial pela questão do desabastecimento de alimentos. O especialista entende que o Brasil, por ser um grande produtor de alimentos e pela sua experiência de combate à fome e à miséria, tem grande relevância.

"O Brasil certamente terá um papel muito importante, não só nessa questão diplomática mais ampla, no que diz respeito a paz e guerra, não só na Ucrânia, mas em outros conflitos internacionais, [...] [mas] sobretudo [em] outras questões [...] [em] que tivemos presença muito importante no início do século, como o combate à fome e às mudanças climáticas."

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