Eleições 2022

'Não teremos meses calmos': especialistas apontam diálogo como solução para um Brasil dividido

Analistas políticos consultados pela Sputnik Brasil após o resultado das eleições presidenciais, com a vitória de Lula, explicam necessidade de se reconstruir as bases democráticas do país em meio ao "fanatismo religioso, ao confinamento nas bolhas da Internet e à idolatria a um político".
Sputnik
A partir de 1º de janeiro de 2023, o presidente Jair Bolsonaro (PL) passará a faixa a um novo comandante do país: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que foi eleito para seu terceiro mandato no último domingo (30).
Escolhido por 60.345.999 de brasileiros, Lula derrotou Bolsonaro nestas eleições por 50,9% dos votos a 49,1%, na disputa à Presidência mais acirrada da história do país.
Se a campanha em si foi turbulenta, cheia de percalços e repleta de fake news, agora o país precisa de estabilidade e previsibilidade para uma transição democrática. Em seu discurso da vitória, Lula já sinalizou esse caminho, afirmando que será um presidente para todos os brasileiros.
"Vamos trabalhar para que a gente possa inclusive restabelecer a paz entre as famílias, os divergentes, para que a gente possa construir o mundo que nós precisamos", disse o presidente.
Mas o que um resultado tão apertado diz sobre o retrato atual do Brasil? O que podemos esperar nos próximos meses, se em determinados momentos Bolsonaro já declarou que poderia questionar o resultado das urnas?
Até a madrugada desta segunda-feira (31), o presidente não se pronunciou sobre a derrota. Desde o meio da apuração, ele permanece a portas fechadas no Palácio da Alvorada, em Brasília.
Eleições 2022
Moraes conversou com Bolsonaro e Lula após resultado; presidente ainda não se pronunciou
A Sputnik Brasil apurou que Bolsonaro se recusou a receber aliados, inclusive o próprio vice-presidente, Hamilton Mourão. O Partido Liberal, sigla do atual presidente, também não se manifestou. Procurada, a secretaria de comunicação da Presidência não respondeu.
Para Alessandra Maia, cientista política e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), é preciso aguardar os próximos capítulos do cenário político para se ter a garantia de que a transição ocorrerá dentro da normalidade, como em 2018, quando Bolsonaro foi eleito, e em todos os outros anos desde a redemocratização.

"Esse processo da transição está em aberto, porque todos nós pensamos, trabalhamos e pesquisamos dentro da lógica das instituições, e o Bolsonaro já mostrou que é um inimigo das instituições", disse a cientista política.

Ao longo do dia de votação, muitos eleitores pelo Brasil foram pegos de surpresa por operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) contra ônibus e veículos particulares.
Eleitores e líderes políticos de diferentes localidades denunciaram o bloqueio da circulação em diversas vias do país por agentes da PRF, principalmente nas estradas do Nordeste, reduto eleitoral de Lula. Ao todo, foram 500 operações.

"Bolsonaro já mostrou várias vezes, com a atuação da PRF, que ele é um inimigo da democracia. Isso ficou tão claro hoje que temos que acompanhar agora as atitudes dele. Está sumido", avalia Maia.

Lula (à direita) durante coletiva a jornalistas em São Paulo, em 29 de outubro de 2022. Foto de arquivo
Rogério Baptistini, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, afirma que os próximos meses e a transição de governo "não serão calmos". Ele lembra que "os sujeitos políticos e o ambiente são os mesmos dos últimos quatros anos".
"Somente uma reforma intelectual e moral, conduzida por democratas sinceros, poderá apontar uma saída para a nossa tragédia", analisa.
Segundo ele, a divisão no país foi explorada com insistência pelo bolsonarismo, com "apelo à luta contra um inimigo interno que deve ser extirpado". O especialista avalia que o presidente conseguiu transmitir essa característica à expressão de seus apoiadores, como "elemento definidor da identidade" dos grupos bolsonaristas.

"O fanatismo religioso, o confinamento nas bolhas da Internet e a idolatria a um político conferem uma identidade e um objetivo às pessoas, ao ponto de deslocá-las da realidade em direção à negação dos fatos e das evidências. O Brasil já atingiu esse ponto", disse Baptistini.

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), concede entrevista após debate presidencial na Band, em São Paulo, em 16 de outubro de 2022. Foto de arquivo

Resultado 'sinaliza agonia' da democracia

Alessandra Maia, da PUC-Rio, aponta que o resultado do pleito não foi apenas a vitória de Lula, mas de "um projeto pró-civilização".

"Acho importante que se perceba no Brasil hoje a divergência. Porque o grande problema da extrema-direita é que ela não aceita o diálogo", afirmou. "Ganhou um projeto a favor do meio ambiente, das minorias, e que vai buscar dialogar com todo mundo."

Para Rogério Baptistini, da Mackenzie, a democracia está corroída pelas lógicas "do individualismo obsessivo e do mercado". Ele avalia que Bolsonaro e seus apoiadores "travaram uma grande batalha ideológica visando romper os laços de solidariedade que unificavam a nação".
A partir daí, sai a luta "no terreno dos costumes, dos valores religiosos e contra um imaginário inimigo comunista", diz o especialista, acrescentando: "A consequência é a confusão e a violência".

"O resultado eleitoral apertado, mais do que o vigor da democracia, sinaliza a sua agonia. Sem o pré-requisito do sentimento de pertencimento à mesma sociedade política, não há motivo para deliberar sobre o destino comum. E democracia é governo, decisão sobre o destino comum."

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