Panorama internacional

Despertou 'atenção de Washington': por que rejeição do plebiscito no Chile agradou os EUA?

Especialista consultado pela Sputnik Brasil explicou relação entre a Carta constituinte rechaçada pelos chilenos e os interesses dos Estados Unidos no país. Jornal norte-americano havia feito editorial defendendo manutenção da exploração de reservas de lítio por empresas privadas.
Sputnik
Rejeitada por 62% a 38% no Chile no último dia 4, a proposta de nova Constituição não desagradou apenas a maioria do povo chileno. Na América do Norte, a mídia norte-americana também se mostrou contra o texto da Carta.
Porém, enquanto especialistas apontam que a rejeição por parte dos chilenos se deu muito mais em função de questões como o aborto e a "plurinacionalidade do Estado", o interesse dos EUA estaria na exploração das reservas de lítio do país.
Antes da realização do plebiscito — uma derrota para o governo de Gabriel Boric —, o jornal norte-americano The Washington Post publicou um editorial com críticas à nova Carta chilena.
A publicação expôs a preocupação do jornal com as reservas de lítio do país sul-americano, alegando que a nova Constituição "poderia reformular o marco legal" da mineração do Chile, que tem acordo de livre comércio em vigor com os Estados Unidos há 18 anos. O dono do jornal é o empresário Jeff Bezos, fundador da Amazon.
"O lítio é um insumo fundamental nas baterias que alimentam milhões de laptops e nas quais os Estados Unidos estão baseando seu futuro automotivo eletrificado. O Chile está nas maiores reservas de lítio do mundo; produziu cerca de 25% da oferta comercial mundial em 2020. Isso é motivo suficiente para atentar para o iminente referendo de 4 de setembro no Chile sobre uma nova proposta de Constituição", escreveu o jornal no dia 31 de agosto.
Pedaços de lítio brilham em rocha extraída de mina de exploração do elemento. Foto de arquivo
Em outro trecho, o The Washington Post diz, categoricamente, que "a nação sul-americana deve enviar sua proposta de Constituição para ser reescrita".
De fato, nas urnas, o povo chileno rejeitou o texto da Carta. Mas até que ponto o interesse dos EUA afetou ou impulsionou a votação contrária à Carta por ampla margem?

"Um ponto que deve ter despertado a atenção de Washington certamente foi o caráter inovador da nova Carta, pois propunha superar a noção de propriedade que a Constituição em vigor pôs em marcha desde 1980. No Chile, praticamente tudo é privatizado", afirma o cientista social Roberto Goulart Menezes, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (Unb).

Por isso, segundo ele, muitas empresas que atuam em setores que poderiam ser de responsabilidade do Estado têm ramificações com companhias estrangeiras. Alguns desses setores, primordiais para o desenvolvimento de um país, são o de distribuição de água e o de mineração.
O presidente do Chile, Gabriel Boric, recebe versão final da proposta de nova Constituição, em Santiago, em 4 de julho de 2022. Foto de arquivo
De acordo com o especialista, até o momento não há nada que indique que Washington possa ter interferido no processo. Mas ele faz a ressalva de que a atitude dos EUA em outros períodos históricos justifica as desconfianças com relação ao país norte-americano em processos políticos na América Latina.

"Em 1973, os EUA atuaram diretamente na derrubada de Salvador Allende apoiando de todas as formas os golpistas", disse Menezes, referindo-se ao golpe militar chileno, que levou o ditador Augusto Pinochet ao poder.

Porém, independentemente dos interesses dos EUA na nova Constituição chilena, a nova Carta enfrentou resistências inclusive de setores progressistas, explica o professor.
Segundo ele, esses segmentos entenderam que era preciso primeiro assegurar direitos sociais universais para depois avançar com reformas constitucionais no parlamento que dissessem respeito ao aborto e ao Estado plurinacional.
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Motivos da rejeição à Carta

O especialista aponta que os principais fatores para a derrota do plebiscito foram: a mobilização da direita e da direita radical no Chile; a campanha de meios de comunicação contra a nova Carta; e a dificuldade da esquerda em dialogar com parte da sociedade chilena acerca dos temas considerados polêmicos.
"Para uma sociedade fortemente conservadora como a chilena, isso pesou na hora do voto, claro. E o fato de o voto no plebiscito ter sido obrigatório, diferentemente do plebiscito para a redação da Constituição, também foi um fator que contribuiu para levar às urnas pessoas que, até então, não haviam se manifestado publicamente contra ou a favor", explicou.
"Os três temas mais polêmicos e que despertaram a ira da direita e da extrema-direita chilenas foram o aborto, a plurinacionalidade e a extinção do Senado, que não devem estar em primeiro plano", indicou. "O governo Boric negociará os princípios básicos para assegurar que a nova Carta não enfrente resistência dos deputados logo no início."
Para Menezes, a diretriz principal da nova Carta deverá ser a de assegurar direitos sociais universais e reorientar o gasto público em setores como saúde, educação, aposentadorias e pensões.
Manifestação em marcha do "Apruebo", em favor da aprovação da proposta de nova Constituição do Chile, em Santiago, em 13 de agosto de 2022. Foto de arquivo
Menezes afirma que, com apenas seis meses no poder, Boric sabe que precisa acelerar as negociações para construir um novo texto, usando o prazo de 125 dias necessários para a abertura de um novo processo constituinte.

"No parlamento, como Boric não tem maioria, a direita exercerá o poder de veto. Ele sabe que o tempo corre contra ele. Certamente teremos novos protestos de rua, que poderão exercer pressão sobre o Parlamento e contribuir para que inovações sejam contempladas no novo texto", prevê o especialista.

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