Panorama internacional

EUA usam cooperação antidroga para expandir tentáculos e China quis dar um basta, diz especialista

Entre as medidas adotadas pela China com o objetivo de responder às provocações dos Estados Unidos em Taiwan está o rompimento de cooperação entre os países em matéria de controle de drogas, em vigor desde 2017. A retaliação chinesa alarmou autoridades norte-americanas, que enfrentam epidemia de opioides, e traz importante componente geopolítico.
Sputnik
A suspensão da parceria foi anunciada logo após a visita da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, a Taiwan. Pequim enxergou essa viagem como uma clara provocação que desrespeita a política de "Uma Só China" adotada por Washington. Declarações posteriores de Pelosi — referindo-se a Taiwan como país — e a visita de outra comitiva de congressistas norte-americanos agravaram ainda mais as tensões e indicaram o empenho dos EUA em seguir confrontando a China.
Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil destacaram a importância da cooperação dos EUA com a China para conter a crise de opioides, em especial o fentanil, que já ceifou dezenas de milhares de vidas nos EUA somente no ano passado. No entanto, há um aspecto geopolítico relevante nesse tipo de cooperação, que envolve a hegemonia norte-americana e o processo de derrocada da influência de Washington no cenário internacional.

Crise de opioides alarma Estados Unidos

Autoridades estadunidenses já indicam preocupação. Rahul Gupta, diretor do Escritório de Política Nacional de Controle de Drogas da Casa Branca, classificou como "inaceitável" a decisão de Pequim.
"Isso terá implicações globais. Países ao redor do mundo estão lutando com drogas sintéticas em suas comunidades. A China desempenhou e deve desempenhar um papel fundamental para ajudar a interromper o fluxo ilícito de drogas como o fentanil e seus precursores químicos", escreveu Gupta no Twitter.
Estou desapontado que a China tenha escolhido interromper sua cooperação nas questões globais de crime transnacional e antinarcóticos à luz de uma epidemia de overdose causada pelo fentanil ilícito que matou mais de 100.000 vidas nos Estados Unidos no ano passado.
O Ministério das Relações Exteriores da China logo respondeu, apontando que a responsabilidade é toda dos EUA, que insistem com as provocações.
"Desconsiderando as severas advertências e as repetidas representações da China, Nancy Pelosi insistiu em sua visita provocativa à região chinesa de Taiwan, que prejudicou seriamente a base política das relações China-EUA. Quanto ao abuso de fentanil nos Estados Unidos, gostaria de enfatizar que [...] a raiz da crise está nos próprios EUA", disse Wang Wenbin, porta-voz do MRE chinês, em coletiva.

"A comunidade internacional, incluindo a China, está exercendo uma gestão e controle cada vez mais rigorosos sobre substâncias relacionadas ao fentanil, enquanto nos Estados Unidos, o abuso de opioides sintéticos, incluindo o fentanil, deteriorou-se constantemente e registrou um aumento nas mortes por overdose. [...] A China tem feito enormes esforços para ajudar os Estados Unidos a resolver seu problema de fentanil. O problema do fentanil não é proeminente na China, onde nunca houve abuso em larga escala do fentanil", destacou.

O antropólogo Frederico Policarpo, professor do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que a epidemia de opioides nos EUA está vinculada à política de proibicionismo e de "Guerra às Drogas" estimulada pelos próprios EUA, bem como pelo avanço da indústria farmacêutica sobre essas drogas.
O professor destaca que os efeitos do proibicionismo já eram sentido em diversos países do mundo, em especial na América Latina, mas começaram a ganhar força nos EUA nos últimos 20 anos.

"A 'Guerra às drogas', motor desse modelo político, tem causado custos financeiros e sociais em várias partes do mundo, em especial na América Latina. A militarização no combate e repressão às drogas tem provocado a corrupção de Estados nacionais e sido utilizada como controle de populações indesejáveis. Colômbia, México, Brasil são exemplos dramáticos da operacionalização dessa política de combate às drogas", apontou.

Policarpo acredita que os EUA provocaram a própria "tempestade" na medida em que permitiram o avanço da indústria farmacêutica sobre os opioides. A propaganda ostensiva pelo uso dessas drogas rendeu processos a empresas do ramo e a redes varejistas.
"Ao contrário do crack que sempre esteve associado ao mercado ilegal, tanto em sua produção como na circulação e consumo, o uso de opioides foi amplamente promovido por empresas e prescrito por médicos. Em 1995, surge o Oxycontin, fabricado pela Purdue Pharma, que fez uma campanha agressiva de propaganda e convencimento de médicos e do público, omitindo uma série de riscos. Por conta dessa estratégia, a Purdue Pharma já foi condenada e continua enfrentando processos nos EUA. Da mesma forma, de modo inédito, redes varejistas também estão sendo acusadas de negligência e estão também enfrentando os tribunais. É importante destacar que o mercado legal diretamente faz parte da disseminação do uso e das overdoses", destacou.

"Por uma via insuspeita, que se inicia com o uso prescrito de opioides, os EUA parecem ter criado as condições ideais para uma tempestade em seu próprio território. Assistimos um crescimento contínuo de mortes por overdoses por opioides nas cidades norte-americanas desde os anos 1990, sem um horizonte de melhoria. Os efeitos do 'proibicionismo', antes controlados e mantidos à distância, parece que começam a ser sentidos no próprio EUA, de modo persistente nas últimas duas décadas", aponta.

Jovem ajuda a montar lápides de papelão com os nomes das vítimas do abuso de opioides em White Plains, Nova York, EUA, 9 de agosto de 2021. Os EUA são um dos países que fazem amplo uso deste tipo de medicamento

Cooperação antidroga: controle e espionagem

Pedro Costa Junior, professor de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (Facamp) e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), destaca que a política de controle às drogas citada por Policarpo é estratégica para os EUA para "aumentar influência em outros países".

"Tem a Guerra às Drogas, o Plano Colômbia… [Nessas políticas] os Estados Unidos usam tráfico de informação, de agentes, de pessoas bem informadas, agentes especializados. Em nome de uma bandeira, entre aspas, 'legítima', que é o combate às drogas, os Estados Unidos fazem esse tipo de parcerias bilaterais e multilaterais para poder expandir os seus tentáculos, a sua influência e os seus interesses em outros países", aponta Costa Jr.

"Acontece que o jogo geopolítico, a disputa hegemônica, [dos EUA] com a China está se afunilando e a China percebeu. Não que ela não tivesse percebido isso antes, mas acho que ela sentiu que esse é o momento de dizer um basta, de dizer não", completou.
Para o pesquisador, o rompimento desse acordo inevitavelmente vai afetar outras áreas de cooperação e essa decisão faz parte de um processo iniciado em 2016, de embate entre os dois países. Costa Jr. enxerga um "efeito dominó" que vai atingir outras áreas e diminuir cada vez mais a cooperação sino-estadunidense.

"O que está em jogo é uma disputa estrutural de poder. As placas tectônicas do sistema-mundo estão se movendo e os Estados Unidos passam por uma crise claramente hegemônica. O grande desafiante de hegemonia norte-americana é a China. A China é uma potência em ascensão, uma superpotência em ascensão, e os Estados Unidos são uma superpotência em declínio", apontou Costa Jr.

O professor acredita que os EUA subestimaram a China com as provocações que têm feito em Taiwan e destacou que a visita de Pelosi a Taipé não trouxe nenhum ganho, apenas instabilidade no sistema internacional. Nesse sentido, Costa Jr. faz um paralelo com a Guerra do Vietnã.
"Se olharmos para história, pouco antes da Guerra do Vietnã, o Vietnã do Sul recebeu, com alguma frequência, representantes governamentais dos Estados Unidos, provocando sistematicamente o Vietnã do Norte. Pouquíssimo tempo depois, estourou a Guerra do Vietnã e teve desfecho muito trágico para os Estados Unidos — os Estados Unidos até hoje convivem com a chamada 'síndrome do Vietnã', como diz Giovanni Arrighi. Os Estados Unidos, em especial a administração Biden, têm mostrado de maneira sistemática que têm subestimado os interesses estratégicos dos chineses, não só com relação a Taiwan mas com relação ao mar do Sul da China", aponta o pesquisador.
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