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Caros, inacabados e sem uso: o que fazer com os 'elefantes brancos' brasileiros?

As visões portentosas da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016 criaram estruturas esportivas modernas em todas as regiões do Brasil. Algumas dessas obras foram apelidadas de elefantes brancos devido ao grande investimento e falta de uso. O problema é amplo e vai além dos estádios. A Sputnik Brasil ouviu especialistas para discutir o assunto.
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Em relatório de junho de 2021, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 7.862 contratos de obras paralisadas após a análise de 27.126 contratos encontrados nos bancos de dados do país. Segundo o tribunal, essas obras totalizam o valor de R$ 15,78 bilhões.
Obra paralisada da estação de metrô da Gávea, no Rio de Janeiro, Brasil, 23 de agosto de 2019
O TCU aponta que as principais razões para a paralisação dessas obras são questões de deficiência técnica, inconsistências no fluxo orçamentário e financeiro e o abandono das obras pelas empresas contratadas.
O órgão avalia que o mau planejamento dos empreendimentos seria a maior causa da suspensão das obras. O TCU identificou problemas desde os projetos à execução, tanto em obras de baixo como de alto valor.
Apesar disso, o tribunal ressalta que o diagnóstico é incompleto, uma vez que mudanças administrativas durante a gestão Bolsonaro teriam reduzido o acesso a dados sobre as obras analisadas. Segundo o TCU, isso está relacionado aos decretos 9.722/2019 e 10.012/2019.

"Existe um decreto do Poder Executivo extinguindo a estrutura de gestão do antigo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]. Com isso, a gestão dos dados foi pulverizada nos ministérios setoriais. Esses, por sua vez, não têm atualizado adequadamente as informações junto ao Ministério da Economia, que foi quem ficou responsável pela consolidação e divulgação dessas informações", disse o TCU em resposta à Sputnik Brasil.

O ministro do TCU Vital do Rêgo ressaltou que mais de 11 mil obras desapareceram dos bancos de dados consultados pelo tribunal. No ano anterior, mais de 38 mil contratos foram analisados e 14 mil obras paralisadas foram identificadas, totalizando cerca de R$ 144 bilhões.
Em abril deste ano, o jornal Folha de S.Paulo denunciou a existência de obras paralisadas com verbas federais da estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A publicação encontrou duas obras da empresa paradas em um município do Maranhão, com custo total de R$ 6 milhões.
Tribunal de Contas da União (TCU), em Brasília. Foto de arquivo
O TCU afirma que há "inúmeros instrumentos" de fiscalização para evitar situações como essa. Dentre as ferramentas, o órgão destaca o artigo 45 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lcp101/00), que sinaliza premissas para o início de novos projetos, como a garantia de que há recursos suficientes para a finalização da obra.

"Os trabalhos do TCU apontam no sentido de que uma das chaves para a solução do problema é o aprimoramento do processo orçamentário público, de tal modo que os novos projetos sejam baseados em adequadas estimativas de demanda [...]. Quando o gestor decide fazer um determinado investimento, ele está decidindo também deixar de fazer outro tipo de investimento que não foi priorizado", ressalta o tribunal.

Para o TCU, mudar o quadro de milhares de obras paradas no Brasil compreende essencialmente três aperfeiçoamentos no processo público:
Melhoria da transparência do processo de escolha pública na alocação orçamentária — escolha dos empreendimentos que serão realizados;
Melhoria da gestão de informações sobre os empreendimentos, com a implantação de um cadastro único de obras e de um sistema de gestão que ajude a mitigar riscos e promover ações ágeis para evitar paralisações e outros problemas;
Melhoria do processo de concepção desses empreendimentos, com uso de instrumentos de análise de viabilidade, avaliação custo/benefício, avaliação custo/efetividade, entre outros.
Homens jogam bola na comunidade da Vila Areia, uma das áreas que serão removidas para continuação das obras da nova ponte sobre o rio Guaíba, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 22 de janeiro de 2021

Quadro fiscal exige decisões políticas para reverter situação

A economista Juliana Inhasz, coordenadora da graduação de economia do Insper, ressalta o papel do TCU na fiscalização de obras inacabadas no Brasil. Diante do volume de obras encontradas pelo tribunal, Inhasz aponta que resolver essa situação exigiria medidas difíceis de alcançar e decisões sobre a alocação de recursos.
"Para reverter essa situação o governo teria que aportar muito dinheiro ou pensar em saídas como ceder essas obras à iniciativa privada, para outros jogadores poderem arcar com esses custos. Qualquer uma das saídas é bem difícil. Reverter essa situação dentro do quadro fiscal é muito difícil, dentro da situação da economia brasileira é muito inviável", afirma em entrevista à Sputnik Brasil.
Apesar do diagnóstico econômico, a pesquisadora aponta que o Brasil tem como resolver as questões, mas isso exigiria esforços políticos e potencialmente faria com que outras áreas, como saúde e educação, ficassem sem recursos.
"A gente não pode dizer que não temos espaço porque tudo é uma questão de priorização do governo nas suas contas, no que precisa pagar diante do que tem de recursos. Então, existe uma percepção de que ele [o governo brasileiro] conseguiria remanejar gastos e tentar arrumar recursos para essas obras", avalia.
Diante das dificuldades para realizar as mudanças, a economista sugere que o governo brasileiro pode escolher priorizar determinadas obras "importantes para a economia brasileira ou que fazem sentido econômico para o momento atual".
A obra inacabada do monotrilho da linha 17 do metrô, em construção desde 2012 na capital paulista, 3 de setembrod e 2021. Foto de arquivo

O caso emblemático dos estádios da Copa de 2014

Entre os exemplos mais conhecidos de construções que compõem o grupo dos chamados "elefantes brancos" no Brasil estão alguns dos estádios construídos para a Copa do Mundo de 2014. É o caso do Mané Garrincha, em Brasília; da Arena da Amazônia, em Manaus; e da Arena Pantanal, em Cuiabá. Apesar de concluídas, as obras são questionadas pelo pouco uso em relação ao alto investimento público.
Sem clubes de futebol com grandes torcidas, os estádios prontos encontraram dificuldades para encher as arquibancadas após a Copa, colocando em xeque bilhões de reais em investimentos, além dos milhões gastos nos anos seguintes com a manutenção das estruturas.
Uma das soluções aventadas para levar público a esses estádios foi o uso das estruturas para receber jogos de times de futebol de outras regiões. No entanto em 2016 a prática foi suspensa pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Em 2021, a Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados chegou a discutir uma proposta para tentar reviver essa solução, mas o Projeto de Lei 5197/2020, do deputado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), foi arquivado.
A despeito dessa situação, a Arena Pantanal, no Mato Grosso, tem sido apontada como um dos exemplos de possível mudança de perfil do estádio. Com a chegada do Cuiabá à elite do futebol brasileiro, no ano passado, a frequência de grandes jogos no estádio cresceu. O investimento no clube mato-grossense foi atraído justamente pela existência do estádio. O desenvolvimento do futebol em mais regiões do Brasil era um dos argumentos para a construção das novas estruturas.
Vista geral da Arena Pantanal em dia de partida entre Cuiabá e Melgar, pela Copa Sul-Americana, em Cuiabá, Mato Grosso, Brasil, 7 de abril de 2022
Atualmente os custos da arena são totalmente cobertos pelo governo do estado e variam entre R$ 300 mil e R$ 315 mil mensais. A maior parte da despesa vem da energia elétrica: cerca de R$ 3,78 milhões anuais. Em resposta à Sputnik Brasil, porém, a Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso (Secel-MT) disse que o governo busca parcerias para custear o aumento das despesas com os jogos da Série A.

"Com a possibilidade de aumento das despesas devido às demandas da Série A, parcerias estão sendo planejadas para buscar dividir esses custos com a iniciativa privada, a exemplo do que ocorre em outros estádios do país", afirmou a Secel-MT.

Além de jogos de futebol, a arena recebe eventos diversos, como shows e campanhas de arrecadação de alimentos. O uso mais inusitado do estádio, porém, é na educação: o complexo abriga a escola Arena da Educação (Escola Estadual Governador José Fragelli), que atende hoje cerca de 400 estudantes do ensino básico.
Para o professor José Carlos Marques, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador do Grupo de Estudos em Comunicação sobre Esporte e Futebol (GECEF), mesmo quando se discute o caso da Arena Pantanal, que conta com o público do Cuiabá na Série A do Campeonato Brasileiro, a construção do estádio "não se justifica".
Parte interna da Arena da Amazônia, em Manaus, Amazonas, Brasil, 13 de maio de 2014
O pesquisador ressalta que o time pode perder o status conquistado e ainda não alcança a média de público necessária. Marques lembra ainda que são poucos os clubes brasileiros que conseguem manter seus estádios cheios, citando os exemplos de Corinthians e Palmeiras.

"Acho que o que aconteceu na Copa foi uma experiência única. Acho que se o Brasil sediasse a Copa do Mundo novamente daqui a quatro anos não haveria essa farra de construção de estádios", afirma à Sputnik Brasil.

O pesquisador da Unesp ressalta que a modernização dos estádios é importante e que, em vários casos, responde a exigências de segurança: "Isso é uma tendência do esporte nas ligas de alto nível no mundo todo". Apesar disso, ele critica os preços dos ingressos e a redução de assentos populares, como no caso do Maracanã, mas principalmente a falta de planejamento para as construções.

O caso do Mané Garrincha

Um dos caminhos implementados para lidar com as despesas públicas das arenas tem sido ceder a gestão das estruturas à iniciativa privada. Em julho de 2020, o governo do Distrito Federal fechou acordo com o consórcio Arena BSB, que assumiu a gestão do Estádio Nacional Mané Garrincha por 35 anos.
O acordo aponta que o governo distrital receberá R$ 5,05 milhões por ano e 5% do faturamento obtido no complexo. Em 2021, a administração do estádio também cedeu os naming rights (direitos de nome, em tradução livre) ao Banco de Brasília (BRB) pelo valor de R$ 7,5 milhões, com contrato previsto de três anos.
O Mané Garrincha foi a maior obra realizada para a Copa de 2014. Com capacidade para 70 mil torcedores — a segunda maior do país, atrás apenas do Maracanã —, o estádio teve custo de construção estimado em R$ 1,4 bilhão.
Visão interna do estádio Mané Garrincha durante jogo entre Vasco e Fluminense, válido pela fase de grupos do Campeonato Carioca, em Brasília, Distrito Federal, Brasil, 2 de fevereiro de 2019

Arena das Dunas

Atualmente o Rio Grande do Norte não tem clubes na Série A do Campeonato Brasileiro e também enfrenta desafios para a manutenção da Arena das Dunas — cuja construção custou R$ 400 milhões aos cofres públicos.
O estádio com capacidade para 43 mil pessoas é gerido por uma Parceria Público-Privada (PPP). A demonstração financeira de 2021 aponta prejuízo, mas um estudo de impacto econômico da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) mostra efeito positivo do estádio no PIB da capital potiguar — média de 0,4% ao ano desde 2014.
Vista interna da Arena das Dunas, estádio em Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 12 de junho de 2014
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