Panorama internacional

Ucrânia vira tema de política interna para turbinar democratas em eleições nos EUA, diz analista

Visita da porta-voz do Congresso dos EUA, Nancy Pelosi, a Kiev indica que a crise ucraniana também é tema da política interna norte-americana. Mas qual será o impacto que o conflito terá nas eleições de meio de mandato nos EUA?
Sputnik
Neste domingo (1º), a porta-voz do Congresso dos EUA, Nancy Pelosi, liderou a visita de delegação parlamentar norte-americana à capital ucraniana Kiev.
Durante a visita, a democrata Pelosi recebeu do presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, a medalha da Ordem da Princesa Olga, concedida a mulheres que contribuem com o Estado ucraniano.
Terceira na linha de sucessão presidencial, Nancy Pelosi é a líder de mais alto escalão a visitar Kiev desde o início da operação militar russa, em 24 de fevereiro de 2022. Na semana anterior, os secretários de Estado e de Defesa dos EUA, Antony Blinken e Lloyd Austin, respectivamente, também estiveram na capital craniana.
Imagem divulgada pela assessoria de imprensa presidencial ucraniana em 1º de maio de 2022. O presidente ucraniano Vladimir Zelensky, à direita, concede a Ordem da Princesa Olga à presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, em Kiev
Ainda que Pelosi e seus colegas congressistas tenham ficado apenas três horas em solo ucraniano, a visita foi um sinal de que o conflito é um assunto de política interna para Washington.
Em novembro deste ano, os EUA celebram eleições legislativas para renovar as 435 cadeiras da câmara baixa do Congresso e pouco mais de um terço do Senado.
Mas qual será o impacto que a crise na Ucrânia terá nas eleições de meio de mandato nos EUA? A crise pode reverter os prognósticos negativos para o Partido Democrata?
Funcionário eleitoral puxa a pilha de cédulas devolvidas da máquina de triagem no escritório de eleições do condado, em Renton, Washington, EUA (foto de arquivo)
De acordo com a pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Universidade Estadual Paulista (GEDES-UNESP) e professora na Universidade São Judas Tadeu Clarissa Nascimento Forner, "a pauta da Ucrânia contribuiu para reinserir a política externa no debate doméstico".
Segundo ela, as eleições presidenciais norte-americanas de 2020, que opuseram o candidato republicano Donald Trump e o democrata Joe Biden, "foram amplamente marcadas por discussões centradas no âmbito doméstico [...] e as plataformas eleitorais de Biden também prometiam um redirecionamento das energias para esse campo".
"Durante o atual governo democrata, a última vez que uma questão de política externa havia estado no centro da pauta foi durante a retirada do Afeganistão, que, de modo geral, foi percebida como desastrosa e, portanto, negativa para a administração", disse Forner à Sputnik Brasil. "Nesse sentido, o debate sobre a Ucrânia surge como uma oportunidade de recuperação do fôlego democrata."
Pesquisa de opinião pública recente realizada pelo instituto ABC em parceira com o jornal The Washington Post revela que a maioria dos norte-americanos está de acordo com o apoio de seu país à Ucrânia.
Paletes de munição, armas e outros equipamentos com destino à Ucrânia são carregados em avião por membros do 436º Esquadrão Aéreo do Porto durante uma missão de vendas militares estrangeiras na Base Aérea de Dover, no estado norte-americano de Delaware, em 30 de janeiro de 2022
Os dados revelam que 55% dos norte-americanos acreditam que os EUA devem manter o fornecimento de assistência militar a Kiev, ainda que 72% sejam contrários a um eventual envio de tropas.
O apoio popular reforça o consenso bipartidário em relação à questão ucraniana no Congresso norte-americano, o que permite a aprovação rápida de pacotes de ajuda a Kiev.
"Este 'consenso' não deve ser supervalorizado, na medida em que ainda há críticas, particularmente do lado republicano, às medidas adotadas pelo governo Biden", notou Forner "O uso dos recursos pode produzir desavenças entre republicanos e democratas."
De fato, congressistas republicanos pediram mais tempo para analisar os detalhes do pacote de ajuda à Ucrânia enviado por Biden ao legislativo no fim de abril, que prevê auxílio suplementar de US$ 33 bilhões (cerca de R$ 165 bilhões) para Kiev, conforme reportou a CNN.

Futuro de Biden

Lideranças do Partido Democrata se preocupam com os índices de aprovação de Biden, que segue aquém do esperado.
Apesar do mau desempenho, a aprovação do presidente subiu cinco pontos percentuais de fevereiro a abril e encontra-se em 42%, segundo pesquisa ABC-Washington Post divulgada no dia 1º de maio .
Os números indicam que o Partido Democrata pode estar apostando no conflito ucraniano para fomentar o apoio ao presidente.
"Podemos dizer que houve, de fato, esta aposta, tanto da parte da Presidência quanto do próprio partido", disse Forner. "O foco concedido à Ucrânia no discurso de Estado da União me parece bastante emblemático em relação a isto."
Conforme Biden tenta associar a ajuda norte-americana a Kiev ao seu próprio futuro político, o Partido Republicano "buscará explorar as fragilidades da estratégia de Biden", acredita a especialista.
No entanto, Forner não acredita que as desavenças partidárias devam prejudicar substancialmente a continuidade do envio de armas e suprimentos militares norte-americanos a Kiev.

Prevalência da pauta doméstica

Eleições legislativas de meio de mandato nos EUA são tradicionalmente focadas em assuntos internos. Apesar da crise geopolítica global, a tendência do pleito de 2022 é seguir o padrão histórico.
"Houve um crescimento da mobilização em torno da pauta ucraniana, mas ainda não me parece que essa mobilização seja suficiente para superar o impacto das pautas de cunho doméstico, como a questão econômica, a violência, entre outros", acredita Forner.
A diretora acadêmica do Instituto Goiano de Relações Internacionais, Danyelle Wood, concorda, mas aponta que "o presidente Biden pode tentar usar a questão da Ucrânia para tirar o foco doméstico das eleições de meio de mandato".
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Wood lembra que a questão do aborto deve tomar a dianteira no debate público até as eleições de meio de mandato, após o vazamento pelo site Politico do rascunho de decisão dos juízes da Suprema Corte dos EUA, que sugerem a reversão de decisão que garante o acesso à interrupção da gravidez no país.
"A questão econômica doméstica também vai entrar, uma vez que o poder aquisitivo dos norte-americanos está caindo, em função da inflação", notou Wood.
Nesse sentido, o conflito ucraniano pode não ter a força necessária para reverter a atual desvantagem democrata nos prognósticos para as eleições legislativas de novembro.
"Em termos de perspectiva histórica, me parece que alguns fatores depõem relativamente mais contra do que a favor de Biden", disse Forner.
Secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin (à esquerda), secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken (centro) e o presidente Joe Biden (à direita)
A especialista aponta que normalmente a oposição se fortalece nas eleições de meio de mandato norte-americanas, ainda mais em período de grande polarização política, que reduziram o período da chamada "lua de mel" entre líderes da Casa Branca e a opinião pública nos últimos anos.
"Ainda que os eventos como a crise ucraniana possam eventualmente passar uma impressão de unificação momentânea, há muitos limites para uma construção mais duradoura", concluiu Forner.
As eleições legislativas de meio de mandato dos EUA serão celebradas no dia 8 de novembro de 2022. O pleito renovará as 435 cadeiras na câmara baixa do Congresso e 35 das 100 cadeiras do Senado norte-americano.
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