Panorama internacional

'Discriminação contra a Rússia na OMC': por que o Brasil não aderiu e qual o futuro da organização?

Apesar do apoio do Brasil, Índia, China e África do Sul, membros do legislativo russo consideram retirar Moscou da Organização Mundial do Comércio (OMC). A Sputnik Brasil conversou com um especialista para saber se o futuro da OMC está em jogo.
Sputnik
Nesta terça-feira (22), o Ministério do Desenvolvimento Econômico da Rússia declarou em nota que é do interesse de Moscou se manter na Organização Mundial do Comércio (OMC), apesar das sanções unilaterais impostas pelo Ocidente.
"A OMC é a única plataforma na qual podemos defender os nossos interesses. Além disso, a saída da Rússia da organização seria recebida negativamente pelos participantes sensatos do comércio internacional, que não aderiram às sanções", declarou o ministério russo.
O debate foi gerado pela decisão da União Europeia, EUA, Canadá e demais países de suspenderem os direitos comerciais da Rússia no âmbito da organização, ao retirar de Moscou o status de "nação mais favorecida".

"O status de nação mais favorecida é um princípio segundo o qual os privilégios e vantagens atribuídos a qualquer membro da OMC deve ser estendido aos demais membros. No fundo é um princípio de não descriminação", explicou à Sputnik Brasil o professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Bruno Martarello de Conti.

A OMC informou em meados de março que 14 Estados-membros solicitaram a retirada do status de nação mais favorecida da Rússia. Anteriormente, EUA e Japão já haviam privado Moscou deste regime.
A organização prevê algumas exceções à essa regra, por exemplo, quando um país assina acordos comerciais bilaterais ou multilaterais, ou para promover o desenvolvimento econômico de países de relativamente baixo desenvolvimento.
Entrada para a sede da OMC em Genebra, Suiça (foto de arquivo)
Além disso, o artigo 21 do acordo GATT 1994, que estabelece a OMC, prevê a retirada do status em caso de "necessidade de proteger interesses de segurança essenciais", especialmente "em casos de guerra ou outras emergências nas relações internacionais".

"A Rússia não sendo mais considerada nesse status significa que pode haver discriminação contra ela do ponto de vista tarifário", disse de Conti. "Os países podem elevar tarifas contra a Rússia para diminuir a importação dos seus produtos. É uma tentativa de uma guerra comercial."

A retirada total ou temporária do status de nação mais favorecida já foi utilizada pelos EUA para empreender guerra comercial. O ex-presidente dos EUA, Donald Trump, invocou a segurança nacional para justificar a guerra comercial empreendida contra a China, que também é membro da OMC.

Posição brasileira

O governo brasileiro optou por não aderir à aliança liderada pelos EUA para retirar o status de nação mais favorecida da Rússia.
Fontes do alto escalão do Ministério das Relações Exteriores ouvidas pelo portal UOL disseram que, por enquanto, o Brasil deve se manter alinhado com Índia, China, África do Sul e outros países emergentes e não isolar a Rússia na OMC.

"O impacto mais imediato é uma tensão entre o Brasil e o grupo de países ocidentais que decidiram retirar o status de nação mais favorecida. Nesse sentido o Brasil não se alinhou aos países ocidentais mais poderosos, o que não vai significar nenhuma retaliação imediata, só cria uma tensão", considerou de Conti.

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos França, chegou inclusive a criticar, no dia 14 de março, o rebaixamento do status comercial da Rússia na OMC, dizendo que decisões como essas devem ser tomadas após debate coletivo na entidade.
"Isso me preocupa, porque essa era uma decisão que, penso eu, ficava melhor tomada se fosse dentro do sistema multilateral de comércio", afirmou o chanceler durante palestra no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília.
O ministro das Relações Exteriores, Carlos França, 20 de janeiro de 2022
O chanceler afirmou que medidas como essas vão contra o espírito multilateral de órgãos internacionais e, logo, não condizem com a posição tradicional do Brasil.
"Isso [uma decisão multilateral] não ocorre, e eu não acho que isso faça bem para o sistema multilateral de comércio nem para os interesses de um país como Brasil, que tem justamente no multilateralismo a sua força", destacou França.
Segundo de Conti, a decisão do governo brasileiro não deve gerar retaliações por parte dos países ocidentais, como a retirada do status de nação mais favorecida do Brasil.

"Não acho que a situação vá se replicar com facilidade. Por trás disso tem um ranço histórico do Ocidente em relação a Rússia", considera de Conti. "Aquela velha história, os países ocidentais fazem guerra pelo mundo e não recebem esse mesmo tratamento."

O especialista ainda considera que a interdependência entre Brasil e Rússia em áreas-chave para a economia brasileira, como o agronegócio, pode ter pesado na decisão do Itamaraty.
"O que parece mais evidente, na minha opinião, é a questão da dependência que temos sobretudo em fertilizantes. O agribusiness é uma das bases de sustentação desse governo, e esse setor se prejudica com a ausência desse produto", notou de Conti.
Colheita de soja em Canarana (MT), em 4 de abril de 2017
Para evitar uma escassez de fertilizantes essenciais para a produtividade da safra brasileira 2022-2023, o Brasil se uniu a seus parceiros latino-americanos na Organização das Nações Unidas para solicitar que alimentos e fertilizantes sejam excluídos das listas de sanções internacionais.

Expulsão da Rússia da OMC?

A retirada do status de nação mais favorecida da Rússia poderia ser um interlúdio para uma expulsão da Rússia da OMC ou para um isolamento mais amplo de Moscou do sistema de comércio internacional.

"Eu não descarto a possibilidade", considerou de Conti. "Há uma tentativa de impedir o avanço do poder geopolítico russo, após um período em que esse poder estava dormente [...] Então medidas mais drásticas no sentido de isolar a Rússia podem acontecer, sim."

O especialista é cauteloso em relação a essa possibilidade, uma vez que, para expulsar um país da OMC, são necessários três quartos dos votos afirmativos dos 164 membros.
No entanto, a própria Rússia pode considerar que a sua manutenção na organização já não atende aos seus interesses. Nesta segunda-feira (21), o deputado russo Sergei Mironov apresentou um projeto no parlamento nacional, a Duma, para retirar Moscou da OMC.
Vyacheslav Volodin fala na Duma da Rússia em 24 de dezembro de 2020
"Nas últimas semanas, a aliança ocidental impôs diversas sanções contra o nosso país. Acredito que, nessa situação, a Rússia deveria se retirar imediatamente da OMC, pondo fim de uma vez por todas a essa organização internacional que, com suas restrições, tanto prejudicou a nossa economia", disse o deputado.
O projeto será debatido entre os membros do parlamento e com os demais órgãos do Executivo local, como o Ministério do Desenvolvimento Econômico.

Crise sistêmica

Com ou sem a Rússia, a retirada de status de nação mais favorecida de países da OMC é por si só uma ferida ao princípio de não discriminação da organização. A interferência de temas geopolíticos na pauta comercial pode agravar a situação do sistema de comércio internacional, que já estava em crise.
"Há uma transformação grande, com uma tentativa das potências ocidentais de se reindustrializar e depender menos do comércio internacional, por entender que ele gera vulnerabilidades", acredita de Conti.
Funcionários trabalham em instalação de produção de semicondutores da Renesas Electronics, durante excursão organizada pelo governo para jornalistas em Pequim, em 14 de maio de 2020. A China anunciou incentivos fiscais para estimular o crescimento de sua indústria de semicondutores após sanções dos EUA
Segundo o especialista, existem limites para a capacidade dos países de retomar a produção industrial interna.
"O capitalismo funciona de forma globalizada, as empresas privadas se beneficiam dela. Eu sou reticente a esse processo de 'desglobalização'. Acredito que o comércio internacional vai continuar relevante, e a OMC também", concluiu o especialista.
A Rússia é membro da Organização Mundial do Comércio desde 2012. No dia 16 de março, a organização informou ter recebido solicitações de 14 membros para retirar o status de nação mais favorecida da Rússia, dentre eles o Reino Unido, União Europeia, Canadá, Noruega, Coreia do Sul, Austrália e Macedônia do Norte, entre outros. No mesmo dia, o Japão seguiu o exemplo dos EUA e privou a Rússia deste status.
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