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Dinossauros e fósseis: tráfico coloca 'momento histórico' da paleontologia do Brasil em risco

A paleontologia brasileira vive um momento histórico. Em meio às descobertas mais importantes dos últimos tempos, que mudam nossa compreensão da História, paleontólogos falam com exclusividade à Sputnik Brasil nesta reportagem sobre como o tráfico de fósseis para a Europa impede o desenvolvimento da ciência nacional.
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Com recentes publicações e estudos paleontológicos que mudam a compreensão acerca da evolução das espécies do planeta, o Brasil parece enfim ter acordado para assumir o seu papel na montagem do quebra-cabeça da história, contribuindo para o preenchimento de importantes lacunas do conhecimento humano. É este, afinal, o objetivo do estudo dos fósseis, compreender uma parte do nosso passado que ficou perdida há milhares (e milhões) de anos.
"O atual momento em relação às descobertas é muito promissor, porque o registro fóssil no país é maravilhoso". Essa é a opinião do pesquisador Rodrigo Muller, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), responsável por dois recentes estudos que foram recebidos com grande prestígio pela comunidade científica internacional. Em um deles, o paleontólogo apresentou descobertas fundamentais sobre a evolução e o tamanho dos dinossauros. No outro, a descoberta, no Brasil, do precursor dos dinossauros.
Pesquisadores da UFSM em Agudo, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, mostram mapa de evolução dos dinossauros.
Comentando suas recentes publicações, ele explicou que o país "tem algo único no mundo, desde os dinossauros mais antigos até uma fauna praticamente exclusiva de pterodátilos. A gente sempre garante que haverá novas descobertas, porque, embora falte pesquisa, o material é muito rico".
Diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner reforçou as palavras do pesquisador gaúcho, acrescentando que "há 15 anos, a contribuição científica do Brasil era muito pequena, mas isso mudou". Citando diretamente as descobertas de Muller, ele afirmou que "o país, atualmente, é um grande produtor de conhecimento científico", principalmente quando o assunto é o estudo de fósseis de dinossauros.

'Não há como entender a história dos dinossauros sem levar em conta as pesquisas no Rio Grande do Sul'

Quando pesquisadores qualificados encontram terreno para pesquisa, a tendência é que novas descobertas sejam anunciadas. Este é o processo que está ocorrendo no país. No último ano, o paleontólogo Rodrigo Muller apresentou ao mundo o fóssil de um animal de cerca de 2,2 metros de comprimento, encontrado na cidade de Agudo, no Rio Grande do Sul. A pesquisa revelou informações sobre o período em que os dinossauros começaram a crescer — entre 233 milhões e 225 milhões de anos atrás.
E o que isso significa? O paleontólogo explica que, no mundo, há escassez específica de um grupo de fósseis que fazem parte de um período único, "um intervalo temporal" que compreende justamente o momento em que os dinossauros passaram a ficar enormes, a exemplo de como são apresentados nos filmes e de como nos acostumamos a imaginá-los. Detectar as características desse período, por meio do registro fóssil, é entender exatamente quais fatores influenciaram no crescimento dos dinossauros.
Fósseis de dinossauros descobertos por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria em Agudo, no Rio Grande do Sul.
O fóssil encontrado em Agudo revela um dinossauro com três metros de comprimento. Porém, "o esqueleto dele deveria ser maior. Curiosamente, é do mesmo tamanho do de outros dinossauros de 1,5 metro. Isso mostra que o esqueleto se manteve igual, apesar da evolução do grupo. Essa é uma das conclusões do nosso estudo, preencher essa lacuna histórica," explicou Rodrigo Muller.
"As descobertas baseadas nos fósseis encontrados, como o formato, a posição dos ossos e as estruturas de fixação muscular, mostram que os dinossauros cresceram gradualmente durante o início da evolução do grupo, mas que as mudanças mais significativas, relacionadas ao aumento do peso, ocorreram somente próximas do momento em que eles passaram dos 100 kg", comentou.
A evolução dos dinossauros segue as mudanças na vegetação e na localização dos continentes. No fim do Triássico (período geológico que se estende de 252 milhões a 201 milhões de anos), os continentes estavam conectados como uma única massa de terra, chamada Pangeia. Alguns dos animais desse período não tinham mecanismos sofisticados na boca para processar alimentos.
O paleontólogo Rodrigo Temp Muller, pesquisador da UFSM, com fósseis do dinossauro.
"O que ele [o fóssil descoberto] nos mostra de maneira geral é que essas mudanças não vão ter acontecido durante esse intervalo que a gente imaginava; elas acontecem depois, já nessas formas mais avançadas. Então ele retém algumas de suas condições primitivas", disse Muller em entrevista à Sputnik Brasil.

'O precursor dos dinossauros, da América do Sul'

Falando sobre a outra pesquisa, Rodrigo Muller explicou que sua equipe "encontrou um novo osso, também no Brasil, que pode ser do animal" que deu origem aos dinossauros. "Ele é o primeiro desse grupo a ser encontrado no país. Ele é um milhão de anos mais antigo do que os ancestrais da Argentina. Isso prova que os animais que deram origem aos dinossauros existiram na América do Sul 1,5 milhão de anos antes do que se imaginava".
Precursores dos dinossauros em uma paisagem do Triássico Médio do Rio Grande do Sul.
O Brasil e a Argentina detêm os registros mais antigos de dinossauros do mundo, com cerca de 233 milhões de anos. Esses depósitos sedimentares preservam também animais que são considerados ancestrais próximos dos dinossauros.

"Esses animais ajudam a entender como se deu a origem dos dinossauros, quais as características que foram mais importantes durante o início da evolução do grupo e quando os 'verdadeiros' dinossauros podem ter surgido", afirmou Muller.

O paleontólogo explicou que as criaturas são geralmente pequenas, com pouco mais de um metro de comprimento. "O fóssil é composto por um fêmur (osso da coxa) com 11 centímetros de comprimento e carrega traços anatômicos que permitem classificá-lo como um dinossauromorfo", detalhou. O Guinness, o livro dos recordes, reconheceu que os dinossauros mais antigos do mundo foram encontrados no Rio Grande do Sul, com fósseis datados do fim do período Triássico.
Precursor dos dinossauros é descoberto no Brasil, no Rio Grande do Sul.
"Esse grupo de animais é o que inclui os dinossauros e seus ancestrais próximos. No entanto, o mais interessante é que o fóssil foi escavado em um sítio fossilífero com pouco mais de 237 milhões de anos, o que configura o registro mais antigo desse grupo de animais para a América do Sul. Assim, além de preencher a lacuna que existia no Brasil em relação a esses animais, o fóssil também revela que os ancestrais dos dinossauros viveram na região pelo menos 1 milhão de anos antes do que se imaginava", analisou o paleontólogo.
É interessante observar também que o novo exemplar foi descoberto, no Rio Grande do Sul, em um sítio com abundância de outros répteis. Entre esses animais se inclui o predador de grande porte Prestosuchus chiniquensis (parente muito distante dos crocodilos), que chegava a atingir cerca de sete metros de comprimento. Isso revela que os ancestrais dos dinossauros passaram por muitos desafios até se tornarem grandes e dominarem os ecossistemas pelos períodos seguintes da história da vida na Terra.
Prestosuchus chiniquensis, também chamado de Tecodonte, no parque Floribal, em Canela, Rio Grande do Sul, em 15 de fevereiro de 2012.

Brasileiros iluminando a História

Embora a pesquisa nos sítios arqueológicos brasileiros esteja entre as mais importantes do mundo e cada fóssil encontrado possa lançar luz sobre um pedaço da História do qual a gente não tivesse conhecimento, as dificuldades no incentivo à pesquisa e a falta de verba são problemas graves para os pesquisadores. A paleontologia no Brasil é movida quase que exclusivamente pelo ímpeto desses profissionais dispostos a decifrar a origem da vida no planeta Terra.
Escavações em sítio fossilífero do Rio Grande do Sul.
Os problemas também passam pela fuga de cérebros. Isso ocorre porque a redução dos investimentos nacionais na tecnologia e na ciência é um entrave para profissionais extremamente qualificados, mas também uma oportunidade para alçar voos internacionais. Tiago Santos, por exemplo, fez graduação e mestrado na UFRJ, inclusive com o professor Alexander Kellner. Seu doutorado, no entanto, foi feito no Canadá, "onde finalmente consegui um financiamento", explicou.

"Após isso, consegui uma vaga em Harvard, [onde estou] desde 2019. Basicamente, trabalho com pesquisa investigando os padrões evolutivos, no tempo profundo (em longas escalas do tempo geológico), de vários grupos de répteis. Busco traçar parentescos entre as espécies, assim como seu desenvolvimento evolucionário", disse o especialista, denunciando ainda que o Teto de Gastos, de 2016, impossibilita qualquer projeto científico no país.

Com ampla experiência no assunto, Alexander Kellner definiu o atual momento do pesquisador brasileiro como promissor, mas a ausência de investimento pode atrapalhar o processo. Ele explicou que o Brasil "está virando produtor de conhecimento", mas falta o principal: "coletar fósseis". Por esta razão, também, "há fuga de cérebros constantemente", disse.
Arqueólogos brasileiros trabalham em fóssil.
Até o momento, há 33 espécies de dinossauros catalogadas com fósseis encontrados no Brasil. Cada um deles representa um período especial e importante da história do planeta. Aos poucos, a ciência nacional vai encontrando seu lugar no processo de perguntas, respostas e evidências que ajudam a contar a história do planeta Terra. À Sputnik Brasil, Tiago Simões disse que "sempre viu nos fósseis uma das formas mais interessantes de se estudar a história do planeta, pois é a janela mais explicativa para os processos evolutivos ao longo do tempo".

Tráfico europeu: onde os problemas começaram e ainda persistem

Para além das grandes descobertas, é preciso relembrar que o acervo de fósseis da América Latina, seja no âmbito da paleontologia, seja em relação às descobertas acerca de sociedades primitivas e indígenas que habitaram a região, por muitos anos foi alvo de inúmeros "roubos" e apropriações indevidas.
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Tiago Simões entende que há dois grandes problemas com esse fato. Em primeiro lugar, "existem as coleções privadas de fósseis que pertencem a colecionadores amadores. Isso é uma prática que existe há muito tempo, principalmente na Alemanha", comentou. Segundo ele, esse acervo "escondido" dificulta os estudos paleontológicos, pois alguns dos exemplares sequer foram documentados.
O outro problema, explicou, diz respeito à lei brasileira. Ele destacou que "se tornou ilegal fazer esse comércio desde 1942, e todo fóssil vendido para o exterior há mais de 70 anos é ilegal". O paleontólogo Rodrigo Muller apresentou uma explicação para essa prática criminosa que retira do país o patrimônio cultural brasileiro.

Na região Nordeste brasileira, as inúmeras pedreiras para extração de rochas e lajes escondem um valioso acervo de fósseis. "Alguns destes funcionários esbarram eventualmente, nas escavações, em alguns fósseis. E essa é uma região muito rica nesses materiais, principalmente para a Era do Cretáceo [compreendido entre 145 milhões e 66 milhões de anos]", comentou.

Fóssil de dinossauro no Museu Nacional (imagem ilustrativa).
Ainda segundo ele, quando esses fósseis aparecem, "os funcionários às vezes os entregam para contrabandistas. Esses, geralmente, são pessoas que têm certo conhecimento para levar isso para outros países. Isso é crime. A venda de fósseis é crime, eles são patrimônio da União", disse Rodrigo Mulller.
A sanha de fazer dinheiro com fósseis remonta a um caso memorável. Em 1995, trabalhadores de uma pedreira entre Nova Olinda e Santana do Cariri, no Ceará, encontraram fósseis de um dinossauro que viveu de 146 milhões a 100 milhões de anos atrás, chamado Ubirajara jubatus — seguindo a tradição brasileira de batizar os animais com nomes indígenas. A descoberta do animal teve grande importância para a comunidade científica.
Nova espécie de dinossauro encontrada no Brasil, Ubirajara jubatus.
Entretanto, em vez de ter parado nas mãos de pesquisadores brasileiros, os registros fossilizados foram adquiridos e contrabandeados para a Alemanha com auxílio de uma licença de exportação forjada. Até a publicação desta matéria, seu holótipo (espécime original da descoberta) ainda está na Alemanha. Nesse sentido, é importante frisar que, no país germânico, 88% da produção científica paleontológica é referente a materiais fossilizados de outras regiões do planeta.
Questionado sobre o acervo de outros países, sobretudo europeus, ser formado por centenas de fósseis latinos, o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, classificou o fato como "desrespeito às leis".
O Museu Nacional do Rio de Janeiro anunciou, em 18 de novembro de 2021, a descoberta de um dinossauro "muito raro", um terópode "sem dentes" que viveu entre 80 e 70 milhões de anos atrás no sul do Brasil.
O paleontólogo Rodrigo Muller acrescentou que países desenvolvidos "têm consciência de que os fósseis foram comprados de maneira ilegal e que, portanto, é preciso cobrar-lhes empatia". Ele explicou ainda que, por outro lado, "há pesquisadores renomados que defendem que é prejudicial para a ciência essa proteção excessiva dos fósseis". Entre os que pensam dessa maneira, a maioria dispensa a repatriação de fósseis para a América Latina.

Repatriação: por que esses fósseis não voltam?

Os três paleontólogos ouvidos por esta reportagem concordam que, a partir dos anos 2000, o império da lei cresceu. Com efeito, o Ministério Público (MP) e a Polícia Federal (PF) lançaram várias operações contra traficantes e contrabandistas de fósseis. Apenas no ano passado, a PF entregou para cientistas brasileiros cerca de 237 fósseis contrabandeados da Chapada do Araripe, no Ceará.
Fóssil do dinossauro de pescoço longo mais antigo do mundo é achado no Brasil, batizado de Macrocollum itaquii.
Porém, tratando-se de repatriação, a questão é mais delicada. A maioria dos países europeus só assinou a Convenção da UNESCO de 1970, que versava sobre as medidas a ser adotadas para impedir a importação de bens culturais, a partir dos anos 2000.
Como a lei europeia não é retroativa, não há obrigação de devolver artefatos ou fósseis que chegaram antes dessa data. A PF brasileira, além de constatar o roubo, precisa provar que as peças foram retiradas do Brasil depois que cada país assinou o tratado internacional. Para conseguir repatriar um fóssil, é necessário investir na diplomacia e no trabalho investigativo das polícias.
O processo é longo e cheio de obstáculos, mas já ocorreu em algumas situações, como os casos de um fóssil de pterossauro que estava na Bélgica e do da aranha Cretapalpus vittari, que havia sido traficado para os Estados Unidos. Em ocasiões de devolução, são instalados procedimentos para apurar os fatos, identificar o roubo, saber como a peça chegou ao exterior e como foi o seu transcurso. Apenas depois é possível fazer o pedido pela atividade de repatriação.
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