COVID-19: após 18 meses, Portugal reabre boates no 'dia da libertação'; médicos aprovam o timing

Portugal entra na terceira e última fase de desconfinamento nesta sexta-feira (1º), data que vem sendo chamada de "dia da libertação". Após mais de 1 ano e meio, as discotecas serão reabertas, uma das principais medidas desta etapa final. Médicos ouvidos pela Sputnik Brasil estão de acordo com o momento.
Sputnik
Com quase 85% da população com vacinação completa, o governo português autorizou novas medidas que permitem que a vida volte ao velho normal. Além da reabertura de boates e bares (na prática, estabelecimentos que vendem apenas bebidas), restaurantes, lojas, eventos esportivos e culturais deixam de ter limitação de número de pessoas, podendo voltar à capacidade máxima.
Também volta a ser liberada a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em vias públicas sem restrição de horários. Para entrar em restaurantes e hotéis não será mais necessário apresentar o Certificado Digital COVID-19 da União Europeia. Mas a apresentação do documento será obrigatória em casas noturnas.
A médica gaúcha Nair Amaral, que trabalha na linha de frente de combate à COVID-19 em dois hospitais da Área Metropolitana de Lisboa (AML), aprova o timing das medidas. Segundo ela, após a população se sacrificar com lockdown, distanciamento social, testes invasivos, vacinação e certificados, este é o momento de colher os frutos do sacrifício.
"Já é chegada a hora de realmente testarmos todas as medidas. Primeiro foi o sacrifício, a gente plantou, agora vamos colher. Não dá mais. Precisamos fazer essa experiência social, testar a vida como ela é de novo. A população, até agora, cumpriu tudo o que foi dito, depois que foi voltado atrás e novamente dito, na maior parte dos lugares do mundo", avalia Nair Amaral.
Uma das principais consultoras da Sputnik Brasil durante a pandemia, a médica brasileira sempre atendeu este correspondente em Lisboa, mesmo nos momentos mais difíceis de crise, nas horas mais improváveis, ainda que de madrugada, após a saída de plantões exaustivos. 
Ela conta que esteve nas regiões Sul e Nordeste do Brasil, em setembro, e que a maioria das pessoas tem respeitado as medidas preventivas, como o uso de máscaras e álcool em gel, bem como o distanciamento social. Segundo ela, em geral, o paciente brasileiro tem medo de doença, pois sabe o que é viver em um país muito grande com problemas crônicos de saúde.
De volta a Portugal, ela analisa que a maior parte da população também foi cumpridora das medidas, assim como em outros países. Por isso, ela acredita que as pessoas merecem essa recompensa da libertação e da reabertura, até para testar se serão necessários alguns ajustes, mas não recuos. 
"Acho que o fato de estarmos conseguindo agora voltar é mérito da população que fez aquilo que foi pedido e não é mérito de nenhum governante. Quem fez sacrifício foi o povo. Acredito que esse é um caminho sem volta, com, talvez, alguns pequenos passos atrás em alguns lugares. Vai haver excessos, mas, daqui para frente, o caminho é esse. Temos que lutar contra recuos, exceto se acontecer alguma coisa totalmente nova e diferente da prevista", defende.
A médica gaúcha Nair Amaral em ação na linha de frente de combate à COVID-19 em Portugal

'Precisamos de discotecas, música, arte e dança', diz médica

Nair ressalta o alto custo psíquico que a pandemia provocou em grande parte das pessoas devido ao isolamento social. Passado o pior momento da COVID-19, é hora de cuidar da saúde mental, acredita ela, reconstruir pontes e laços afetivos que foram desatados devido à necessidade de distanciamento físico. 
Nesse sentido, ela aponta que a arte é uma resposta aos distúrbios provocados na saúde mental durante o confinamento. Como o poeta e diplomata Vinicius de Moraes declamou em seu "Samba da Bênção", Nair também acredita que "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida". E mostra que, por trás do jaleco de médica e de EPIs, também bate um coração.
"As pessoas estão social e mentalmente doentes, inseguras, com medos. Foi um dos maiores testes recentes de sofrimento coletivo. Como se sai disso? Precisamos de discotecas, espetáculos, música, arte e dança, confraternização. O ser humano precisa de afeto, de congregação. Precisamos uns dos outros, ver as nossas faces", poetiza. 
Para ela, é preciso mais do que olhar nos olhos por debaixo de máscaras. A especialista concorda que as máscaras protegem e que é melhor com elas do que sem, mas faz a ressalva de que a respiração humana, com seus pulmões e vias aéreas, não é apropriada para o uso eterno desse equipamento de proteção individual.
Por isso, argumenta que é necessário usá-lo por um período determinado, à exceção dos profissionais de saúde.
"Tem pessoas que se falam há quase dois anos e não sabem quem são, porque só viram os olhos. A face e o rosto são a nossa identidade social. Isso tudo não é certo, não é fisiológico, não é natural, não é saudável nem física nem mentalmente e não deve ser perpetuado", justifica.
Enfermeiras portuguesas segurando caixas de Styrofoam para recolher doses da vacina da Pfizer/BioNTech contra COVID-19 para serem distribuídas nos hospitais de Lisboa
Feliz, contente, otimista e favorável à reabertura. Essas são algumas das palavras que descrevem o estado de espírito atual de Doutora Nair. Apesar da perda de milhões de vidas em decorrência da pandemia, ela faz um balanço com saldo positivo para a humanidade. 
A médica acredita que as sociedades saem vencedoras, mas alerta para que o aprendizado seja mantido como memória para futuras pandemias, que hão de vir.
"Só chegamos a essa parte de poder voltar porque as pessoas não só fizeram o certo, mas se sacrificaram. Deram suas vidas, os seus anos de vidas, sacrificaram seus afetos, amores, não viram seus pais e amigos. Entraram em depressão, perderam empregos. As pessoas fizeram sacrifícios profundos, nunca mais recuperáveis, e ainda estão fazendo. Pais que morreram sem ver os filhos, sofrimentos psíquicos de todos os tipos. As pessoas se submeteram a isso. E elas merecem uma chance e credibilidade, depois da doação e resiliência", ensina. 

Médico carioca vê risco em suspensão de exigência de certificados 

Já o médico carioca Marcio Sister, que mora e trabalha em Vila Nova de Gaia, no Norte de Portugal, é mais pragmático. Apesar de ser favorável à maioria das novas e finais medidas de desconfinamento do governo, inclusive a reabertura de discotecas, ele está preocupado com a suspensão da obrigatoriedade de apresentação de certificados de COVID-19 para entrar em restaurantes e hotéis.
Mesmo avaliando que será um alento para os empresários, porque diminuirá os custos e o tempo de atendimento, e para os próprios clientes, pois não vão precisar se preocupar com isso, o especialista faz a ressalva de que a medida virá acompanhada de incerteza e insegurança.
"Nós, que tínhamos uma segurança de entrar num restaurante, sentar à mesa e saber que, na mesa ao lado, as pessoas tinham o certificado e estavam vacinadas, agora não vamos mais saber. Vai ser um risco. Vamos torcer para que isso funcione. O tempo vai dizer. Se não fizerem isso, nunca vai se saber", pondera Sister.
O médico carioca Marcio Sister mora e trabalha em Vila Nova de Gaia, no Norte de Portugal
Ainda assim, ele concorda que o momento é o mais adequado ao teste final do desconfinamento. O médico ressalta que não é preciso esperar 100% da população ser vacinada, uma vez que, mesmo assim, as pessoas continuam a transmitir o novo coronavírus. 
"O 'dia da libertação' é uma situação inevitável do momento da pandemia. Em algum momento, isso aconteceria. Portugal, a meu ver, está num momento muito favorável. Os índices todos estão se mostrando favoráveis, índices de vacinação maiores do mundo", diz à Sputnik Brasil.
A imunização completa já atingiu 84,5% da população portuguesa. Dados do último relatório da Direção-Geral de Saúde (DGS), divulgados nesta sexta-feira (1º), mostram que, nas últimas 24 horas, houve quatro óbitos e 696 novas infecções. O sucesso da inoculação fez com que a força-tarefa pela vacinação fosse desmobilizada nesta semana.
Com isso, o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, que era o coordenador do plano de vacinação, vai voltar à sua carreira militar e é cotado para assumir o cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada, de acordo com especulações da imprensa portuguesa. No entanto, Marcelo Rebelo de Sousa lembrou que cabe ao presidente da República a palavra final sobre essa decisão.
"Com muita pena e tristeza, o vice-almirante Gouveia e Melo foi embora, a equipe dele assumiu para continuar o esquema da vacinação, e vamos torcer para que isso vá adiante", torce Sister. 
Questionado pela Sputnik Brasil se acha mais complicada a não obrigatoriedade de certificados para entrar em restaurantes do que a reabertura das discotecas sem o uso obrigatório de máscaras, o médico diz que sim, desde que a exigência de apresentar os certificados à entrada das boates seja cumprida. 
"Estou na rua e vejo muita gente ainda de máscara. Várias pessoas com as quais falei dizem que vão continuar usando máscara, mesmo em locais em que a máscara poderia ser evitada", relata.
Comentar