'País está de luto': analista comenta crise haitiana e consequências do assassinato do presidente

Professor de antropologia da UFRGS conversa com a Sputnik Brasil sobre a morte do presidente haitiano, os distúrbios que ocorrem no país desde 2018 e como Porto Príncipe pode romper com uma tradição de autoritarismo.
Sputnik

Na madrugada de quarta-feira (7), o primeiro-ministro interino do Haiti, Claude Joseph, anunciou que o presidente do país, Jovenel Moïse, havia sido assassinado em casa. A primeira-dama Martine Moïse ficou ferida e está sendo tratada em um hospital em Miami, EUA.

O homicídio chocou o país e a comunidade internacional. Jovenel Moïse venceu as eleições haitianas em 2016 e assumiu a presidência em fevereiro de 2017. Desde 2018, Moïse sofria críticas por querer mudar a Constituição do país para tentar se reeleger e, mais recentemente, era repreendido por não conseguir combater as gangues que aterrorizam os cidadãos.

"Se antes disso [o assassinato do presidente] o país mergulhava numa insegurança, sem dúvida as previsões são de mais insegurança e incerteza em relação ao futuro do país", afirma Handerson Joseph, professor de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), à Sputnik Brasil.
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'Assassinato covarde'

Jovenel Moïse foi morto com 12 tiros, segundo o juiz Carl Henry Destin, que investiga o caso.

"Nós o encontramos deitado de costas, calça azul, camisa branca manchada de sangue, boca aberta, olho esquerdo perfurado. Vimos um buraco de bala na testa, um em cada mamilo, três no quadril, um no abdômen," detalhou o juiz, citado pelo jornal Le Nouvelliste.

Os disparos que atingiram o presidente haitiano foram realizados por armas de grosso calibre e por projéteis de nove milímetros.

Handerson Joseph lamenta a morte do presidente e destaca o momento de tristeza que o país atravessa.

"Uma notícia trágica, um assassinato de forma covarde. Em nenhuma democracia se espera o assassinato de um presidente no exercício do seu mandato […]. Não é uma boa lição para a democracia […]. Ontem [7 de junho], as pessoas praticamente ficaram em suas casas, não saíram para as ruas porque causou um momento de incerteza, de insegurança […]. Sem dúvida é um momento de tristeza para o país, que séculos atrás foi o berço da liberdade, da democracia."
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Homicídio encomendado?

Na quarta-feira (7), autoridades do Haiti anunciaram que prenderam duas pessoas que supostamente estariam envolvidas no ataque e que outras quatro morreram durante troca de tiros. Nesta quinta-feira (8), foi divulgada a prisão de mais quatro suspeitos, um deles cidadão norte-americano. As autoridades os tratam como "mercenários", mas não disseram até agora a serviço de quem eles estariam.

O primeiro-ministro interino Claude Joseph afirmou que os assassinos falavam inglês e espanhol. Questionado sobre a possibilidade de o atentado ter contado com intervenção estrangeira, o professor da UFRGS é cauteloso.

"[Há] vários rumores circulando, um vídeo [que supostamente registra o ataque] mostra que eles usaram um megafone e ouve-se que falavam em inglês, espanhol e crioulo. E, segundo o primeiro-ministro, algumas pessoas desse comando teriam se identificado como agentes norte-americanos, o que o governo norte-americano negou […]. [Não podemos ser] precipitados em relação a quem são os mandantes do crime, podem ser pessoas de dentro do país, de fora do país, ou os dois. São investigações bem apuradas, bem aprofundadas que vão chegar a conclusões, assim espero, em relação ao que ocorreu."
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Moïse no poder

O professor de antropologia recorda que o falecido presidente era muito contestado no país e que, em outubro de 2019, reuniu uma grande manifestação, que juntou pela primeira vez quase todos os grupos da sociedade civil haitiana: igrejas, artistas, intelectuais, partidos da oposição. Mas, desde o início da pandemia, os protestos perderam força.

O governo queria fazer uma constituinte para mudar alguns artigos da Constituição haitiana, entre eles o Artigo 134, que versa sobre o mandato presidencial.

"Uma das metas do presidente era mudar a Constituição, ele queria fazer uma consulta popular para mudar a Constituição de forma autoritária. A princípio era fazer em junho, mas não conseguiram articular e mudaram a data para setembro, mas infelizmente o presidente morreu. A ideia era mudar alguns artigos, entre eles o que permitiria que o presidente fosse reeleito, que tivesse dois mandatos consecutivos, o que a Constituição atual, de 1987, não permite. O mandato tem duração de cinco anos", explica o especialista.

Mas o desejo de perpetuação no poder não era o único problema da presidência de Moïse. Embora as manifestações tivessem começado reclamando da corrupção e a impunidade, a violência e, especificamente, sequestros no país cresceram exponencialmente este ano, comenta Handerson Joseph.

"Alguns setores da sociedade relacionam o crescimento das gangues com o governo atual, dizendo que há um emparelhamento estatal, onde o Estado se beneficia disso. É uma crítica da oposição, mas não há provas. As forças policiais do país ainda não conseguiram intervir em algumas áreas [dominadas por] gangues e as pessoas comuns não conseguem transitar. E há um apelo para frear essa onda de sequestros, que aumentou significantemente […]. Isso tudo tornou a situação ainda mais dramática", lamenta o professor da UFRGS.
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Futuro do Haiti

Horas após o assassinato do presidente, Claude Joseph, primeiro-ministro interino, assumiu provisoriamente o comando do país e declarou estado de sítio por duas semanas.

Claude Joseph estava de saída do governo. Moïse havia anunciado seu substituto, o médico Ariel Henry, que seria empossado esta semana. Como esse protocolo não ocorreu, Joseph segue como primeiro-ministro.

Questionado sobre prognósticos políticos, Handerson Joseph receia o estado de sítio e espera que o país tenha eleições democráticas em breve.

"O país está de luto. É o momento de respeitar a sociedade haitiana, de os políticos, sobretudo, respeitarem esse luto da família haitiana, [que] perdeu sua liderança número um do país. Mas, sem dúvida, ontem [7 de julho] já começaram a se articular […]. Quem seria o ex-primeiro-ministro foi quem ficou à frente do país, reunindo-se com outros ministros e determinando o estado de sítio para os próximos 15 dias, que é um processo de militarização do Estado, onde o Estado restringe a comunicação, a circulação de pessoas, de ideias e assim por diante", comenta.

O professor conclui afirmando que, nas próximas eleições, tanto a oposição quanto a situação vão "mobilizar as narrativas em torno da morte [do presidente] para uma possível condução do governo atual ou para erguer um governo novo, alternativo". Handerson Joseph faz votos para que, independentemente de quem vença, o novo presidente "seja capaz de romper com essa tradição de autoritarismo, tragédia, insegurança e incertezas no país, que seja [uma] liderança política que lute em prol da sociedade haitiana, de um país novo e que faça jus da importância da revolução haitiana, a importância dos ideais de liberdade e democracia que tanto os ancestrais lutaram para erguer o país".

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