Desconfiança da UE ainda é forte para permitir a entrada da Turquia no bloco, diz especialista

Tentando ingressar na União Europeia desde a década de 1980, o progresso da inserção da Turquia no bloco encontra diversos desafios para sua realização. O especialista em Oriente Médio, Heitor Loureiro, contou à Sputnik Brasil quais questões ajudam nesse impasse.
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Há exatos 34 anos, no dia 14 de abril de 1987, a Turquia protocolou seu primeiro pedido para fazer parte da União Europeia (UE). Desde que surgiu como Estado independente, no final da Primeira Guerra Mundial, em 1923, Ancara começou a desenvolver uma política de aproximação, tanto política como cultural, à civilização ocidental.

Depois de alguns anos estabelecida como nação, a vontade turca de fazer parte do bloco europeu surgiu como uma dessas estratégias. A tática de aproximação foi ainda mais impulsionada no fim da década de 1980, com o término da Guerra Fria, em um cenário no qual o mundo tentava viver uma unificação global.  

Porém, atualmente, o ambiente nas relações entre a Turquia e o Ocidente estão bem diferentes, o clima positivo enfraqueceu, a comunicação amistosa deu lugar a dinâmicas mais conflituosas. Para entender o porquê dessa mudança, a Sputnik Brasil ouviu Heitor Loureiro, doutor em História e pesquisador associado do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (GEPOM).

Desconfiança da UE ainda é forte para permitir a entrada da Turquia no bloco, diz especialista

Segundo o especialista, um dos primeiros golpes no desenvolvimento das boas relações foram os atentados de 11 de setembro, no qual países de maioria mulçumana, como é o caso da Turquia, começaram a criar receios em países ocidentais, após o ataque às Torres Gêmeas nos Estados Unidos.

Loureiro também indica outro ponto de inflexão importante, o qual repousaria no fato de Ancara abrigar muitos refugiados sírios. Apesar de ser reconhecido o papel humanitário que o país turco desenvolve, grandes potências europeias desconfiam que pode ser feito uso estratégico desse acolhimento.

"[...] Milhões de refugiados sírios entram na Turquia, e o país se torna uma espécie de guardião desses refugiados para evitar que eles cheguem à Europa. Então, temos que entender também os usos que a Turquia faz desses milhões de refugiados para conseguir ajuda financeira por parte da Alemanha ou do bloco europeu. O Ocidente olha para Ancara nesse momento com algumas ressalvas, porque entende o papel humanitário que o país tem nessa acolhida, mas também desconfia do uso político desses refugiados", disse Loureiro.

Em um terceiro ponto, o especialista cita que o atual governo turco ampliou uma característica mais centralizadora em suas políticas através de Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia desde 2014. Essa política ganhou maior impulso após 2016, com a tentativa de golpe sofrida por Erdogan, a qual o presidente conseguiu vencer, mas que ajudou a promover uma administração mais autoritária de sua parte.

Divergências atuais entre Turquia e União Europeia

No dia 6 de abril desse ano, alguns líderes da UE foram à Turquia para tentar reativar as relações entre Ancara e Bruxelas. Entre os enviados estavam o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que se reuniram com presidente Recep Tayyip Erdogan.

Porém, mesmo com essa iniciativa, Loureiro salienta que as questões dos direitos humanos, muito enaltecidas pelo bloco europeu, afastam Ancara dessa aproximação, pois justamente pela política autoritária e de repressão, muitos países europeus criticam a atuação do governo de Erdogan.

"O aumento do autoritarismo, da prisão, do expurgo feito nas universidades, na burocracia, na sociedade civil, a estatização dos meios de comunicação, isso tudo vai ser destacado pelos críticos da Turquia dentro do contexto europeu", conta Loureiro.

O especialista também lembra que nessa mesma visita, aconteceu a embaraçosa situação na qual o cerimonial turco não reservou um assento para presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante uma reunião com Erdogan. O episódio foi amplamente divulgado como tendo sido uma falta de respeito da Turquia em relação à recepção dos líderes e como uma atitude machista do governo turco.

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Para Loureiro, com esse episódio, Erdogan quis "dar um recado" para o bloco europeu de que ele daria as cartas sobre a política na Turquia, deixando entender um certo tipo de superioridade em relação à União Europeia.

"Esse evento foi um símbolo de como a Turquia olha para União Europeia nos últimos tempos", caracterizou o especialista.

A questão do Chipre também foi levantada por Loureiro. O país, que faz parte da UE, teve sua região norte ocupada pela Turquia. No local, Ancara institucionalizou a República Turca do Chipre do Norte, que não é reconhecida pelos demais governos e as Nações Unidas. Portanto, apenas a parte sul do país faz parte do bloco europeu.

Outros pontos de tensão entre as conexões turcas e europeias seriam o envolvimento de Ancara na questão da Líbia, pois o governo turco diverge do governo francês no que diz respeito a situação na região, e a exploração turca de recursos naturais no Mediterrâneo Oriental, em águas gregas e cipriotas, já que tal ação pode ser observada como exploração turca em águas europeias.

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Grécia e Turquia, uma relação historicamente difícil

Em particular, as relações entre Atenas e Ancara são historicamente conturbadas, porém, o especialista citou alguns processos entre as duas nações que ajudaram a estimular as tensões até hoje observadas.

Loureiro relembrou o genocídio grego, que ocorreu no começo do século XX, no qual gregos sofreram um processo de extermínio dentro do Império Otomano. Outro ponto seria a dificuldades de cidadãos turcos de origem grega que passaram por uma série de dificuldades dentro da Turquia devido aos diferentes golpes militares que Ancara sofreu no decorrer dos anos.

Toda essa situação teria desembocado na ocupação turca do norte do Chipre na década de 1970, o que não agradou em nenhuma instância, até hoje, os gregos.

"As relações são historicamente perturbadas, apesar dos países serem vizinhos e terem que conviver. [...] O que vemos nos últimos tempos são novas facetas dessas tensões, envolvendo [atualmente] a questão da exploração de recursos naturais, dos hidrocarbonetos, sobretudo nas águas do mar Mediterrâneo [...]. Daí entra o direito marítimo de cada país naquela seara", explica o especialista.

A influência da nova administração dos EUA

Porém, Loureiro considera que a nova administração dos EUA, conduzida por Joe Biden, possa fazer com que Erdogan mude suas diretrizes no que diz respeito à sua política externa, o que também encorparia uma mudança relativa a Atenas.

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O especialista afirma que Biden tem demonstrado que estará mais presente na política internacional do que seu antecessor, Donald Trump, e que Washington pretende estar mais atuante em regiões que a Turquia também opera, como o Oriente Médio e o Mediterrâneo. Portanto, Loureiro acredita que Erdogan possa querer estabelecer uma política diferenciada para contornar tal cenário.

"Erdogan percebeu que a mudança no governo norte-americano pode ter que levar a Turquia para uma correção de seus rumos de política externa [...]. Acredito que o presidente turco tenha aberto vários flancos para que de alguma forma possa contornar esses obstáculos, e a Grécia seria um desses. Ter uma Grécia menos hostil, mais próxima da Turquia, seria um alívio para política externa turca", conta Loureiro.

Adicionalmente, o especialista ressalta o fato de Ancara ter vários desafios externos, não só em relação a Atenas, mas também suas constantes preocupações com a Síria, tal como a Rússia, que tem interesse em territórios em comum com a Turquia, como a região do Cáucaso, segundo Loureiro. Sendo assim, uma política mais harmoniosa com a Grécia ajudaria o país turco a solucionar alguns conflitos que enfrenta.

Visões para o futuro

Em relação a aproximação entre Turquia e União Europeia, Loureiro diz que não vislumbra uma melhora. Para o especialista, seria importante para retórica turca estar dentro do bloco europeu, mas ao mesmo tempo, como citado anteriormente, a desconfiança do bloco permanece em alta devido as questões dos direitos humanos.

"[...] O genocídio armênio é colocado como uma questão para que a Turquia não seja reconhecida como um país que tem suas questões de direitos humanos resolvidas, assim como o tratamento dos turcos em relação aos curdos. Todo o esforço feito por Ancara para interferir na Síria também é um ponto importante na leitura europeia", conta Loureiro.

O especialista também cita outros tópicos que podem dificultar o estabelecimento de melhores laços, como os milhares de refugiados que poderiam seguir para Europa uma vez que o país estaria inserido no bloco e o anti-islamismo cada vez mais latente no discurso de algumas lideranças europeias.

Com esse cenário, uma mudança na política externa e interna da Turquia seria, então, necessária para finalmente Ancara se tornar um dos membros da União Europeia.

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