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Ansiedade, insegurança e exclusão: Enem marcado pelo ensino remoto acentua desigualdades no Brasil

O primeiro dia de provas do Enem está marcado para este domingo (17). Candidatos enfrentam o medo da COVID-19, em meio a uma nova onda de infecções que assola todo o Brasil, depois de quase um ano inteiro de ensino a distância – que prejudicou o aprendizado e o equilíbrio emocional dos alunos. Será que a prova deveria ser adiada mais uma vez?
Sputnik

Márcio de Lemos, de 18 anos, sofreu com crises de ansiedade e não conseguia sair de casa: ao pisar na rua, sentia taquicardia e falta de ar. Esther Vieira, de 17 anos, não tem acesso estável à Internet: várias vezes, teve de sair às pressas no meio de uma aula para a casa da tia para conseguir acompanhar as lições. Ravena da Silva, de 18 anos, ganhou 12 kg durante o isolamento por descontar o nervosismo na comida – sem conseguir manter o foco para estudar, ela pensa em desistir de seu maior sonho: tentar medicina.

Márcio, Esther e Ravena são três dos 5.783.357 inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Com histórias e desafios diferentes, eles contaram sobre suas trajetórias à Sputnik Brasil. Os três alunos do 3º ano do ensino médio compartilham uma aflição em comum: não se sentem preparados nem seguros o suficiente para prestar o exame. Marcada inicialmente para 1º e 8 de novembro de 2020, a prova foi adiada para janeiro de 2021 por conta da pandemia. No entanto, nas últimas semanas o Brasil voltou ao patamar de maior número de infecções e mortes causadas pelo novo coronavírus.

Além disso, com a pandemia, escolas de todo o Brasil fecharam as portas em abril de 2020 e a maior parte delas não reabriu desde então. Alunos e professores tiveram de se acostumar com o ensino a distância, que trouxe novos desafios para a já degradada educação no Brasil: disponibilidade de computadores e acesso à Internet não fazem parte da realidade de uma parcela considerável da população brasileira. Professores – muitos sem o preparo necessário – tiveram de migrar o conteúdo para plataformas digitais. Alunos precisaram aprender a manter o foco e a atenção estudando de casa. Isso tudo em meio ao medo provocado pela infecção do novo coronavírus.

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A medição de competências deveria ser repensada para este ano, afirma pedagogo

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 17% dos brasileiros não tiveram acesso à Internet em suas casas durante a pandemia – o que corresponde a 35 milhões de pessoas. Outra pesquisa, divulgada pela Agência Brasil, revela que 42% dos brasileiros (88 milhões) nunca utilizaram um computador. Ambos os levantamentos ressaltam que o acesso a tecnologias digitais e à Internet são proporcionais à renda familiar e à etnia dos entrevistados. Entre os alunos do ensino médio sem acesso à Internet, 77% são negros ou indígenas, e 99% são de famílias de baixa renda, segundo os dados do IPEA.

Este é o caso de Márcio, que é de etnia indígena e cuja mãe, única fonte de renda da família, acabou demitida durante a pandemia. Aluno do CIEP Guilherme da Silveira Filho, em Bangu, no Rio de Janeiro, Márcio quer fazer jornalismo. Ele conta que acessa a Internet com um pacote limitado de dados: "Tive que buscar meios de assistir às aulas usando pouca Internet". Aliando a própria dificuldade à de outros colegas, Márcio entrou em contato com professores da rede pública do Rio e, por conta própria, criou o projeto Uma Gota no Oceano, para facilitar o acesso às aulas de alunos que estavam "desanimados, desacreditados e sem esperanças com ano letivo de 2020". O projeto beneficiou mais de 100 alunos. "Foi isso o que me fortaleceu: eu vi que tinha pessoas iguais a mim, passando pelas mesmas dificuldades", conta Márcio.

Esther, que vai tentar direito, também enfrenta problemas de conexão em Caxias (MA), onde mora: "Se cai uma chuva um pouco mais forte, fica impossível acompanhar as aulas". Nestes casos, a solução era contar com o apoio da família: "Na mesma hora eu ligava para minha tia, pegava as coisas correndo e minha mãe me levava de carro para a casa dela".

Para o pedagogo Lincoln Araújo, professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), casos como estes são reflexos do processo "profundamente excludente" da educação remota no Brasil. Em entrevista à Sputnik Brasil, Araújo afirma que, mais uma vez, o país passa pelo que ele chama de "paradoxo" da modernização, em que "a modernização chega, mas apenas para alguns".

"É preciso defender uma democratização do acesso às vias tecnológicas. Todos os professores e alunos precisam ter acesso à tecnologia. Não podemos achar que, porque um aluno tem um celular, ele está preparado para ter acesso à educação formal. […] A gente não pode escamotear e esconder este grave problema: a educação remota hoje perpassa por uma profunda exclusão social", diz Araújo.

Além disso, o pedagogo avalia que, diante de todos os problemas enfrentados pelos brasileiros durante a pandemia, a educação remota "não deu conta de cumprir com todos os conteúdos necessários" para a avaliação do Enem. Por isso, ele defende que a medição de competência dos candidatos deveria ser repensada, pelo menos para este ano.

"Considerando as condições de convivência isolada, de pressões psicológicas e de educação remota, a mim, me parece o mais importante agora garantir o acesso destes jovens à universidade, para que a universidade possa cuidar dos jovens", diz Araújo.
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A pressão psicológica do isolamento: 'Eu não conseguia ir à rua', relata aluno que sofreu de depressão

O desequilíbrio emocional foi outro desafio enfrentado pelos alunos durante a pandemia. Falta de estímulo, pressão para estudar e dificuldade para manter o foco e a atenção foram alguns dos problemas relatados por Márcio, Esther e Ravena. Segundo eles, quanto mais os dias passavam, menor era a presença e a participação dos alunos nas aulas.

Ravena conta que, em sua escola, as três turmas de 3º ano do ensino médio, com 36 alunos cada, acabaram virando apenas uma, com cerca de 40 alunos. "A maior parte dos alunos não liga a câmera. [...] Estávamos acostumados a conversar, a nos entender pelo olhar com os colegas na sala de aula, e depois passamos a ver apenas as iniciais dos colegas na janelinha das câmeras desligadas", conta Esther, que é colega de Ravena no Colégio Militar Tiradentes IV, em Caxias (MA).

A falta de convivência pessoal e o ambiente desestimulante prejudicam não só o processo de aprendizagem, mas também a sociabilidade dos alunos. Segundo Lincoln Araújo, a educação remota privilegia um modelo diferente de socialização, centrado no individualismo.

"Os processos interpessoais físicos da escola são importantes, como a sala de aula, o espaço para a prática de esportes e para o desenvolvimento artístico. Isto tudo envolve uma dialética entre as potencialidades de cada aluno e a coletividade. […] O indivíduo se faz no coletivo. Nós nos educamos em reciprocidade. E a reciprocidade em ambiente digital não é igual", avalia Araújo.

Como consequência do isolamento e do individualismo, os alunos enfrentaram sintomas de transtornos psicológicos. Ravena relata ter sentido muita pressão para estudar. Chegou a dormir apenas seis horas por dia e acordar às cinco da manhã: "Fiquei muito nervosa, e minha fuga foi na comida", diz a jovem, que ganhou 12 kg desde o início da pandemia. Esther conta que passou noites acordadas tentando estudar e, no dia seguinte, "estava acabada", mas estudava mais. Passou a conviver com a ansiedade e a insônia: "Eu deitava, mas não conseguia relaxar. Pensava: 'Estudei tempo suficiente? Eu deveria estar estudando agora, mas eu preciso dormir também. O que eu faço?'", contou a jovem.

Insônia também fez parte da rotina de Márcio. Ele passou a tomar remédios para dormir durante os meses de isolamento social. O aluno, que já havia sofrido com depressão anos atrás, voltou a apresentar sintomas depressivos: "E dessa vez ela veio mais pesada. Eu nunca tinha passado por uma crise de ansiedade antes, mas em 2020 eu senti. Eu não conseguia ir à rua. Quando eu chegava na esquina, meu coração começava a acelerar muito, eu sentia uma falta de ar forte e voltava pra casa".

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Os três estudantes estão longe de estarem sozinhos. Segundo uma pesquisa da Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, 54% das famílias brasileiras relataram que algum adolescente do domicílio onde moram apresentou algum sintoma relacionado à saúde mental durante a pandemia, como alterações no apetite, distúrbios do sono ou preocupação exagerada com o futuro. Além disso, 28% dos jovens de 11 a 17 anos disseram ter sentido uma diminuição de interesse nas atividades cotidianas, e 20% apresentaram agitação, tristeza ou choro fácil.

Fabiana Amorim, mestra em psicologia cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco, explica que o confinamento pode intensificar os sintomas de ansiedade pela falta de ativação de um recurso neurológico do cérebro humano chamado sistema de reforço. Por este sistema, nosso organismo busca a repetir sensações e experiência que nos proporcionam bem-estar.

"A cada comportamento que temos com resposta positiva, queremos repetir, para repetir o bem-estar, como sair com os amigos, se divertir, rir, ir à sorveteria ou à balada. No isolamento, isto não acontece. Não tem o reforço que nos leva a querer cada vez mais a busca de prazer, de aventuras, de experiências novas", explica Amorim, em entrevista à Sputnik Brasil.

A psicóloga cita a falta de interação social como outro causador de baixa autoestima e de sintomas de ansiedade nos adolescentes. "Sem ter um grupo de aceitação para se expressar, emitir opinião, saber se está agradando ou não, o jovem acaba perdendo motivação", avalia Amorim. Soma-se a isso a necessidade de gerenciamento do próprio tempo em casa, tendo que se dividir entre estudo e lazer, e os alunos tiveram uma conjunção de fatores causadores de aumento nos níveis de ansiedade, de humor rebaixado e abatimento.

'Bateu um desânimo, um desespero de não conseguir passar o meu conhecimento aos alunos', conta professora que enfrenta a ansiedade

Não foram só os alunos que sofreram no ensino a distância. Uma pesquisa realizada pela Nova Escola revelou que, durante a pandemia, apenas 8% dos professores declararam se sentir ótimos ao comparar sua saúde emocional com o período pré-pandemia. Outros 28% consideram péssima ou ruim a própria saúde emocional neste momento. O mesmo estudo ainda aponta que a ansiedade afeta 68% dos educadores do Brasil.

Cássia de Souza, que leciona no Colégio Estadual Conde de Nova Friburgo, em Cantagalo (RJ), faz parte destas estatísticas. A professora de história de 52 anos, que já sofria com ansiedade antes da pandemia, conta que tem pouco conhecimento de informática e enfrentou uma grande insegurança ao ter de se adaptar ao ensino remoto. Enfrentou episódios de medo profundo de não conseguir dar aulas. Para preparar as lições, contou com a ajuda de um projeto desenvolvido pela escola, chamado Aprender a Aprender, que ofereceu suporte a alunos e professores durante a pandemia. Para controlar a insônia e o nervosismo, passou a tomar remédio.

"Passava horas e horas acordada planejando a aula, pensando se eu ia acessar a aula na hora certa, se a aula ia ser boa. Cheguei a ficar sem dormir. […] Houve momentos em que eu achava que não iria conseguir. Bateu um desânimo, um desespero de não conseguir passar o meu conhecimento aos alunos. Tive um pavor, um medo, fiquei transtornada", disse Cássia, em entrevista à Sputnik Brasil.

A insegurança e a sobrecarga sentidas por Cássia são, segundo Lincoln Araújo, comuns à maior parte dos professores durante a pandemia. Ao obrigar professores a conciliarem o espaço familiar de suas casas com o espaço de sala de aula, a educação remota da pandemia estabeleceu uma nova divisão social do trabalho, segundo o pedagogo.

"A educação remota determina uma nova forma de exploração do professor em relação ao processo de trabalho. Ele trabalha mais, dentro de casa, é obrigado a adquirir tecnologia, muitas vezes por conta própria, e é pressionado a atender uma determinada produtividade, muitas vezes sem ter o preparo necessário para isso", afirma Lincoln Araújo.
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Eis a questão: ainda há tempo para adiar?

Além das dificuldades de acesso à Internet, de aprendizado e de questões psicológicas que surgiram em consequência do ensino remoto, o aumento de casos de COVID-19 nas últimas semanas é uma preocupação dos que defendem o novo adiamento do Enem. Na semana passada, o Brasil atingiu mais duas marcas negativas no enfrentamento da pandemia: a de 200 mil mortes e a de oito milhões de infectados pelo novo coronavírus.

Diante do aumento de casos, a Defensoria Pública da União (DPU) pediu à Justiça o adiamento do exame na última sexta-feira (8), com apoio de entidades estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). No pedido, a DPU alega que "não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de COVID-19".

O Ministério da Educação, no entanto, afirma que a prova vai acontecer nos dias 17 e 24 de janeiro e que todas as medidas preventivas, como o uso de máscaras e o distanciamento social, serão respeitadas. Para o médico Sylvio Provenzano, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), regras como estas são suficientes para garantir a segurança dos candidatos.

"O maior risco é a aglomeração. Mas, desde que haja o distanciamento e o uso correto das máscaras, o risco é muito pequeno. […] Se existe uma coisa além da economia que sofreu enormes prejuízos no Brasil, foi a educação. […] Adiar mais uma vez o Enem é colocar mais para baixo aquilo que já está tão por baixo no nosso país, que é a educação", afirma Provenzano, em entrevista à Sputnik Brasil.

O adiamento da prova não é consenso nem entre os candidatos. Apesar do receio da contaminação e de reconhecer que o medo pode atrapalhar na hora da prova, Esther e Ravena preferem fazer o exame o quanto antes. "No meu coração, eu sinto que deveria ser adiado. Mas, pelo lado psicológico, já estamos estafados. Ter alguma certeza neste momento seria essencial", diz Ravena. Por outro lado, Márcio afirma que, "com toda a certeza", é a favor do adiamento da prova, alegando que dificilmente algum aluno estará com o lado emocional em equilíbrio para o exame: "Mas eu sei que é uma grande ilusão achar que nós, estudantes, somos ouvidos. Gritamos o ano inteiro sobre os riscos desta prova, mas a voz só ecoou dentro de nós mesmos".

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