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O que a presidência de Joe Biden, nos EUA, representa para os interesses do Brasil?

A chegada de 2021 promete trazer mudanças na política externa dos EUA. Com Joe Biden empossado a partir do dia 20 de janeiro, quais relações ele construirá com Jair Bolsonaro? O que mudará para o governo brasileiro? Para responder essas perguntas, a Sputnik Brasil conversou com dois especialistas, Marcos Cordeiro Pires e Tanguy Baghdadi.
Sputnik

A alternância do poder em Washington, entre Democratas e Republicanos, sempre esteve acompanhada de uma onda de transformações para os países da América Latina, dado que a política externa norte-americana, apesar de respeitar características que unem os dois maiores partidos dos EUA, está em constante mutação, seja em questões sobre imigração, comércio, cooperação militar, ou meio ambiente.

Após a última eleição, que alçou Joe Biden ao cargo de presidente, inevitavelmente surgiram questionamentos sobre como será postura do governo de Jair Bolsonaro daqui para frente, uma vez que ele manteve-se alinhado ideologicamente à Donald Trump nos últimos dois anos.

Decerto, a questão do meio ambiente e da destruição da Amazônia voltará ao debate. O partido de Joe Biden, o Democrata, tem parlamentares atentos ao tema do ambientalismo, em especial ao aquecimento global causado pelas queimadas. Porém, as relações entre Estados Unidos e Brasil não se resumem a uma questão ambiental.

O que a presidência de Joe Biden, nos EUA, representa para os interesses do Brasil?

O Brasil vai ajustar sua política externa ao multilateralismo? Como ficará a questão da tecnologia de 5G? E a base de Alcântara, o que pode acontecer? Qual tratamento será dado à América Latina - aos "parceiros" do Brasil - por Joe Biden? Para entender estes questionamentos que abrem as discussões sobre política externa para 2021, a Sputnik Brasil conversou com Marcos Cordeiro Pires, professor da UNESP e pesquisador do INCT-INEU, o Instituto de Estudos dos Estados Unidos, e Tanguy Baghdadi, professor de relações internacionais do IBMEC.

O futuro das relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos

Em julho, antes da eleição nos EUA, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, disse que as relações com os Estados Unidos "não serão afetadas caso o candidato democrata Joe Biden vença" o pleito deste ano contra o republicano Donald Trump.

"Estou convencido de que, em um eventual governo democrata, com certos ajustes, seremos capazes de manter uma agenda muito positiva. Os presidentes Bolsonaro e Trump têm um relacionamento muito próximo, o que trouxe avanços muito importantes, mas esses avanços são entre o Brasil e os Estados Unidos, não entre os dois presidentes", avaliou na época.

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Ernesto Araújo fazia referência aos benefícios que o Brasil conseguiu após algumas decisões de Trump, como a suspensão da proibição de compra de carne brasileira, em vigor desde 2017, e também o apoio à candidatura brasileira para ingresso na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os dois países também assinaram acordos de defesa e cooperação espacial.

Apesar das conquistas, o professor do IBMEC, Tanguy Baghdadi, verificou que a questão ambiental pode se tornar um empecilho para o andamento das futuras boas negociações.

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Segundo ele, "Bolsonaro precisa tentar de alguns pontos de aproximação, o que chamamos de agenda positiva. Questões comerciais, parcerias tecnológicas e temas relacionados aos direitos humanos devem dominar essa agenda, e podem contribuir para aproximar os dois governos. Mas é difícil para o Bolsonaro, porque é improvável que o governo Biden efetive uma aproximação sem falar da questão ambiental. Não é somente ela, mas essa questão ecológica será um pré-requisito para começar qualquer aproximação".

Marcos Cordeiro Pires possui um entendimento semelhante. Ao falar sobre as dificuldades de uma política de aproximação à Biden, listou possíveis problemas junto ao eleitorado do presidente brasileiro. "Diante da vitória da Joe Biden, o governo Bolsonaro deveria dar um giro em 180 graus em sua política externa, principalmente em temas sensíveis para a massa dos eleitores democratas, como a questão da mudança climática, o tema dos direitos humanos e, principalmente, apostar na reconstrução das instituições multilaterais, indo contra ao discurso atual que é crítico ao chamado globalismo. Seria uma reversão muito grande, o que implicaria na perda substancial de sua base de apoio".

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O multilateralismo em um mundo conectado

Ambos entrevistados entendem que, ao contrário do que acontecia na gestão de Donald Trump, há grande probabilidade de Joe Biden reverter a política externa dos EUA com relação aos órgãos multilaterais. Na véspera de Natal (24) deste ano, Joe Biden apresentou oficialmente sua equipe de segurança nacional e política externa.

Em uma sinalização clara do que pretende fazer, boa parte dos escolhidos fizeram parte da equipe da administração Obama. Para a mídia norte-americana, este foi um claro sinal de que o presidente eleito pretende recolocar os Estados Unidos nos mesmos trilhos em que estavam antes dos quatro anos em que Trump esteve na presidência.

"A principal diferença na relação entre Brasil e EUA que teremos daqui para frente, com a chegada de Joe Biden, é a falta de aproximação e convergência ideológica. O governo brasileiro endossava e dava força às ações do governo norte-americano, mesmo que isso não representasse qualquer benefício para o Brasil. A tendência é que os dois governos, nesta relação, sejam cada vez mais pragmáticos. Então quando falamos de questões como 5G, ou a cooperação técnico-militar, ou até mesmo a entrada na OCDE, a tendência é que tenhamos dois governos olhando exclusivamente para os seus objetivos", disse Tanguy Baghdadi.

O professor Marcos Cordeiro, por sua vez, entende que o Brasil terá dificuldade de acompanhar os movimentos de Biden, sobretudo em uma possível retomada do protagonismo norte-americano junto às principais organizações internacionais. "Antes de tudo, é preciso considerar que o governo Bolsonaro buscou ajudar a campanha à reeleição de Donald Trump de diversas maneiras, como mobilizar a comunidade brasileira conservadora nos EUA para apoiar os republicanos, ao zerar a tarifa de importações de etanol para favorecer os fazendeiros do estado de Iowa e ao reproduzir as fake news de Trump com relação à China".
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"Além disso, o governo Bolsonaro esteve ao lado de Washington nos grandes temas internacionais, como no esvaziamento do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no apoio à anexação de parte da Palestina por Israel, ao criticar os esforços de mitigação dos efeitos da mudança climática inscrito no Acordo de Paris, ao se posicionar contra a China e os demais países em desenvolvimento nas negociações da OMC, ao destruir as instituições regionais como a Unasul e a Celac, ao desestabilizar o governo venezuelano, ao interferir na eleição presidencial argentina e contribuir para o golpe de estado na Bolívia, em 2019. Bolsonaro chegou a apoiar o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani, um crime à luz do direito internacional", disse o pesquisador do INCT-INEU.

Marcos Cordeiro, analisando o aspecto do multilateralismo com a chegada Biden, enumerou o que, segundo ele, não mudará na relação bilateral com o Brasil: (a) importância estratégica do Brasil como área de influência dos Estados Unidos; (b) a importância dos Estados Unidos como parceiro comercial brasileiro; (c) a grande força do soft power dos Estados Unidos no Brasil, principalmente pela influência cultural exercida em todos os campos; (d) a importância do Brasil como aliado dos Estados Unidos na América Latina, principalmente pelos recentes acordos de cooperação militar e espacial assinados por Trump e Bolsonaro e, ainda, (e) pela importância do Brasil como aliado dos Estados Unidos na disputa entre EUA e China.

A manutenção da base de Alcântara

A questão envolvendo lançamentos pela base de Alcântara também suscitou dúvidas com a chegada de Joe Biden. O professor Marcos Cordeiro Pires relembra que os norte-americanos, ao longo da história, sempre foram pragmáticos. Na segunda metade da década de 1970, em que o governo de Jimmy Carter criticava o Brasil por conta dos crimes cometidos pela ditadura militar contra os direitos humanos, o Departamento de Estado apoiava o golpe na Argentina que levou ao desaparecimento de 30 mil pessoas. Tradicionalmente, afirma o pesquisador, "os interesses econômicos e políticos dos EUA se sobrepõem aos chamados valores democráticos".

​Marcos Cordeiro Pires acredita que Biden não trará qualquer empecilho à base espacial de Alcântara. Vale lembrar que o governo brasileiro espera fechar negócios em breve, consolidando-se no setor do lançamento de pequenos satélites e faturando com um novo mercado, que segundo estimativas poderia triplicar nas duas próximas décadas. Em janeiro deste ano, o presidente da Agência Especial Brasileira (AEB), Carlos Augusto Teixeira de Moura, disse que, inicialmente, serão explorados os pequenos satélites de órbita baixa. "Alcântara está preparado para lançar foguete de 50, 100 toneladas no máximo", afirmou.

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De acordo com Marcos Cordeiro Pires, "os EUA ganharam uma enorme vantagem durante o governo de Jair Bolsonaro, que foi a concessão da base de lançamento de Alcântara, que sofria uma grande resistência do Brasil pelo menos desde 1990. A base de Alcântara é muito importante para exploração do espaço, porque é a base mais próxima do Equador, possibilitando economizar combustível em viagens espaciais".

"Particularmente, ela ganha uma importância maior diante da possiblidade de explorar comercialmente a Lua, principalmente uma matéria prima escassa, que pode ser o combustível do futuro, o hélio três. Adicionalmente, a possibilidade de negócios para o Brasil é muito grande, porque não apenas a NASA poderá lançar foguetes da base de Alcântara, mas também outras, como a Space X e a Virgin, empresas privadas que estão ingressando no mercado de viagens espaciais. Portanto, com um ganho muito grande como esse, foi uma das vitórias de Bolsonaro", concluiu o professor.

Amazônia e a questão ambiental

Ao falar do futuro das relações entre Brasil e Estados Unidos, torna-se inevitável não citar a Amazônia, uma vez que o ecossistema amazônico foi alvo de intensas discussões ao longo de 2020 entre Biden e Bolsonaro. No debate para presidente dos EUA, Biden disse que "a floresta amazônica no Brasil está sendo destruída, arrancada. Mais gás carbônico é absorvido ali do que todo carbono emitido pelos EUA. Eu tentarei ter a certeza de fazer com que os países ao redor do mundo levantem US$ 20 bilhões [R$ 112,9 bilhões] e digam [ao Brasil]: 'Aqui estão US$ 20 bilhões, pare de devastar a floresta. Se você não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas'".

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O presidente brasileiro respondeu de forma ríspida as declarações:

​Neste contexto de animosidade entre os chefes do Executivo de Brasil e EUA, Marcos Cordeiro comentou a importância do debate sobre a Amazônia em um cenário de aproximação diplomática com os EUA. "Ocorrerá uma maior pressão dos Estados Unidos sobre o governo brasileiro na questão ambiental, notadamente no tema da preservação da Amazônia. Se Bolsonaro insistir em trilhar a linha que colocou a diplomacia brasileira como pária internacional, o distanciamento político entre Brasil e Estados Unidos será inevitável, aumentando ainda mais o isolamento internacional do governo Bolsonaro, que já possui passivos muito grandes com a Europa e com a China".

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Mercosul e América Latina

Não é só o meio ambiente que, no momento, separa Bolsonaro de Biden. Ainda vice de Barack Obama, quando veio ao Brasil em 2014, Biden trouxe na bagagem 43 relatórios produzidos pela inteligência americana entre 1967 e 1977, sobre torturas, censura e assassinatos da ditadura militar, uma contribuição para o trabalho da Comissão Nacional da Verdade. 

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A questão dos direitos humanos é muito falada por especialistas que tratam das relações entre Biden e Bolsonaro. Neste sentido, é importante lembrar que os EUA enfrentam graves acusações de violação dos direitos dos negros, o que os colocam em suspeita para condenar quaisquer supostas violações aos direitos humanos. Não obstante, há muitas décadas países latino-americanos, e parte do mundo, condenam as sanções econômicas dos EUA às nações mais pobres, cuja miséria é agravada em função destas imposições comerciais.

Marcos Cordeiro Pires falou do possível tratamento que Joe Biden dará aos países do Mercosul. Segundo ele, "fica em aberto o tema econômico, pois o governo Trump criou a Iniciativa América Cresce, para apoiar investimentos de empresas estadunidenses no setor de infraestrutura, buscando refrear as iniciativas chinesas nesse campo. Há que se considerar também qual será o papel do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que pela primeira vez será dirigido diretamente por um cidadão dos Estados Unidos, Maurício Claver-Carone, que busca instrumentalizar o banco para a contenção da China. O jogo está em aberto".

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"Não penso que haverá mudanças bruscas no posicionamento de Biden com relação à América Latina, mesmo porque grande parte das políticas externas recentes foram definidas por acordo bipartidário. É preciso considerar que há décadas a nossa região não desperta interesse nos grandes debates dos EUA, exceto talvez pela questão da imigração ou do narcotráfico. Há um tema que pode emergir com força, que diz respeito à competição com a China no espaço latino-americano, seja por meio da Iniciativa Cinturão e Rota, seja por conta da tecnologia de Internet de 5G, pois os EUA estão pressionando os países da região para bloquear a empresa Huawei", afirmou Marcos Cordeiro Pires.

Para Tanguy Baghdadi, "trata-se do segundo maior parceiro comercial do Brasil, cuja influência como potência hegemônica no planeta deverá voltar a crescer na gestão Biden. Biden deve olhar para a América Latina como uma região próxima, com a qual ele não quer muito desgaste. Mas ele já deu demonstrações de que as sanções serão um instrumento importante para forma como este governo pretende fazer política externa, como foi com o Trump, e como foi com o Obama. Todos usaram bastante deste artifício contra governos como Cuba e Venezuela".

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