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Tratado para Proibição das Armas Nucleares não é causa, mas sintoma de discórdias, diz especialista

O embaixador brasileiro Sérgio de Queiroz Duarte e a pesquisadora russa Ekaterina Mikhailenko abordam o Tratado para Proibição das Armas Nucleares, que poderá construir uma ponte ou aprofundar o abismo entre países nucleares e não nucleares.
Sputnik

Previsto para entrar em vigor em janeiro de 2021, o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares é sintoma, e não causa, do desentendimento entre países nucleares e não nucleares, diz pesquisadora russa.

Em 24 de outubro, Honduras se tornou o 50º país a ratificar o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares (TPAN), garantindo que o instrumento entre em vigor em 22 de janeiro de 2021.

Inovador, o tratado propõe que as armas nucleares, a exemplo das armas químicas e biológicas, se tornem ilegais, obrigando os países possuidores a eliminarem seus arsenais nucleares.

Os cinco países que hoje possuem legalmente armas nucleares – EUA, Rússia, China, França e Reino Unido – são contra o tratado, que não consideraria os desafios de segurança existentes no mundo hoje.

Já os países não nucleares e organizações da sociedade civil acusam os países possuidores de quererem manter seu status nuclear indefinidamente, sem levar em consideração a segurança dos países que optaram por não ter armas de destruição em massa.

O debate sobre o TPAN pode ou aumentar o abismo existente entre países não nucleares e nucleares ou, ao contrário, equilibrar o jogo e ser o alicerce para construir um mundo mais seguro para todos.

Não proliferação e desarmamento

As armas nucleares são objeto do tratado mais bem-sucedido das relações internacionais contemporâneas: o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP).

Assinado por 189 países, o TNP foi bem-sucedido em frear a proliferação de armas nucleares.

Em 1961, o então presidente dos EUA, John F. Kennedy, acreditava que, na década de 70, até 25 países obteriam arsenais nucleares. Hoje, somente sete países confirmam a posse desse tipo de armamento.

No entanto, o TNP obteve muito menos sucesso em aplicar o seu artigo 6, que diz respeito ao desarmamento nuclear.

"Não houve medidas claras de desarmamento, ao contrário, os países nucleares, apesar de terem reduzido o número de armas que possuem, aumentaram exponencialmente sua capacidade de destruição", disse o embaixador Sérgio de Queiroz Duarte à Sputnik Brasil.

Para ele, os países nucleares "continuaram a interpretar o TNP como uma licença para fazerem o que quiserem, como se [o tratado] não os obrigasse a tomar medidas claras pelo desarmamento nuclear".

"Havia uma demanda por parte dos Estados não nucleares para que os Estados possuidores apresentassem um plano de ação, um cronograma com prazos para o desarmamento", disse a docente da Universidade Federal dos Urais e especialista em não proliferação de armas nucleares Ekaterina Mikhailenko à Sputnik Brasil. "Mas isso não ocorreu."

Para tentar reforçar o desarmamento, um grupo de sete países, do qual o Brasil fez parte, propôs a criação do TPAN na Assembleia Geral das Nações Unidas.

"Do ponto de vista do regime de não proliferação, a polarização entre os países nucleares e não nucleares já era uma realidade" antes da elaboração do TPAN, acredita a pesquisadora.

"O TPAN não é a causa dessa polarização, mas um sintoma", disse Mikhailenko

Esse desentendimento entre Estados nucleares e não nucleares foi acompanhado por uma mobilização cada vez maior da sociedade civil.

A Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN, na sigla em inglês) se destaca por ser uma das principais apoiadoras do TPAN e por ter sido laureada com o prêmio Nobel da Paz em 2017.

Tratado para Proibição das Armas Nucleares não é causa, mas sintoma de discórdias, diz especialista

"Nossa equipe de pesquisa acredita que esse grupo recebeu financiamento de Estados que apoiam a eliminação de armas nucleares", revelou Mikhailenko.

A elaboração do TPAN, no entanto, demonstra "aos países nucleares que há uma preocupação grave e genuína do restante da humanidade" com a manutenção de arsenais nucleares, disse Duarte.

Para que o TPAN?

De acordo com organizações da sociedade civil em favor do desarmamento, as armas nucleares devem ser proibidas, assim como o são as armas químicas e biológicas.

"Haveria uma lacuna jurídica, uma vez que todas as armas de destruição em massa são proibidas, menos as nucleares", disse Mikhailenko. "Atualmente, um número limitado de Estados possui armas nucleares de maneira totalmente legal."

Tratado para Proibição das Armas Nucleares não é causa, mas sintoma de discórdias, diz especialista

Um dos objetivos do acordo seria, portanto, "tornar a posse de armas nucleares um fato anormal, reforçando o estigma associado a elas".

"Do ponto de vista ideal, o acordo é muito bom. Ele propõe um objetivo humano, um mundo desnuclearizado, que concorda que a posse de armas nucleares é algo perigoso, que pode ter consequências muito sérias", disse a pesquisadora.

Países nucleares

Apesar das boas intenções do TPAN, os países legalmente nucleares – EUA, Rússia, China, França e Reino Unido – acreditam que o tratado não aborda de forma realista os desafios de segurança internacional contemporâneos.

De acordo com esses países, "o TPAN não considera a realidade objetiva, nem que estamos em um momento no qual as questões de segurança estão bastante complicadas", disse Mikhailenko.

Segundo ela, "as doutrinas de segurança de todos os Estados nucleares se baseiam na política de dissuasão, na qual as armas nucleares desempenham papel central".

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Para o embaixador Sérgio de Queiroz Duarte, quando os países nucleares "falam de segurança, estão se referindo à sua própria segurança".

"E a segurança do resto do mundo, dos outros 191 países que não possuem armas nucleares e que são ameaçados pela existência dessas armas?", questionou o embaixador. "A segurança não é propriedade dos países nucleares."

Após a abertura do acordo para assinatura, o Departamento de Não Proliferação do Ministério das Relações Exteriores da Rússia realizou estudos, nos quais levantou alguns questionamentos relevantes ao texto do TPAN.

Há uma preocupação de que países que assinem o TPAN se sintam autorizados a sair do TNP e, portanto, deixem de estar submetidos às inspeções da Agência Internacional de Energia Nuclear (AIEA), que garantem que esses países não vão desenvolver armas nucleares.

"Tecnicamente, isso pode acontecer" concedeu Mikhailenko. "Mas essa não é a intenção daqueles que elaboraram o tratado."

Segundo ela, o texto do TPAN estipula que o tratado seja um complemento, e não uma substituição, do TNP.

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Outra preocupação levantada pela Rússia é com o artigo 17, que prevê a possibilidade de países saírem do TPAN.

Segundo o texto, seria "possível entrar no acordo, dizer que se é a favor da proibição de armas nucleares, e depois simplesmente sair. Isso quer dizer que a proibição de armas nucleares é reversível?", questionou a pesquisadora.

Além disso, a Rússia se opõe ao fato de que a AIEA seja a agência responsável por verificar a eliminação de armas nucleares, uma vez que a agência já realiza muitas inspeções para garantir a não proliferação desses armamentos.

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"Não há dúvidas de que essa é a única entidade capaz de realizar essa função", disse Duarte. "Mas isso, como o próprio TPAN diz, será organizado uma vez que um país nuclear entre para o tratado, e não antes."

Apesar dos questionamentos, Mikhailenko nota que a Rússia vem expressando uma posição mais flexível, "em prol de uma abordagem na qual diz entender o motivo pelo qual o TPAN foi proposto, mas expressa sua discordância".

De acordo com ela, apesar da posição russa estar atualmente baseada em argumentos jurídicos, o país também aponta a saída dos EUA de acordos de controle de armamentos como um dos motivos pelos quais Moscou não poderia aderir ao TPAN.

Tratado para Proibição das Armas Nucleares não é causa, mas sintoma de discórdias, diz especialista

Os EUA, por sua vez, "dizem que não podem aderir principalmente por causa da Rússia, que alegadamente viola todos os acordos, e da China, que estaria modernizando seu arsenal nuclear", explicou a pesquisadora.

"Cada um culpa o outro", disse Duarte. "Essa discussão não tem sentido, afinal é a segurança de todos os países, e não só dos nucleares, que está em jogo."

Para o embaixador, seria mais produtivo se "tanto os países nucleares, quanto os não nucleares procurassem convergências entre o TNP e o TPAN, ao invés de ficar catando divergências".

"E espero que os países nucleares compreendam que é do seu interesse pertencer ao TPAN para eliminar os armamentos nucleares, que ameaçam não só a segurança do resto do mundo, mas também a deles", concluiu Duarte.

O Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares (TPAN) foi aberto para assinaturas na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2017. Em 24 de outubro de 2020, o tratado atingiu sua 50ª ratificação e deverá entrar em vigor no dia 22 de janeiro de 2020.

O Brasil participou da elaboração do tratado e é signatário do mesmo, apesar de ainda não ter ratificado o instrumento. O TPAN encontra-se atualmente na Comissão de Relações Exteriores do Congresso Nacional.

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