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Sputnik em Brumadinho: Uma cidade que se une pela dor (FOTOS, VÍDEO)

Passava de meio-dia no dia 25 quando uma das barragens de rejeitos do complexo no Córrego do Feijão cedeu, inundando refeitório, prédios administrativos da Vale e deixando centenas de mortos e desaparecidos. A Reportagem da Sputnik Brasil viajou até Brumadinho e acompanhou como a cidade está lidando com o luto coletivo e a angústia por notícias.
Sputnik

À beira de um mar de lama no trecho da zona rural de Brumadinho conhecido como Cerradão, o taxista Milton Faustino Barbosa acompanha o helicóptero do Corpo de Bombeiros içar um saco preto com uma perna encontrada pelos oficiais. Franze o cenho, aponta a câmera do celular para o céu e à Reportagem, pergunta retoricamente: "será minha irmã?".

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Milton é um dos moradores da pequena cidade a 2 horas de Belo Horizonte que há oito dias esperam notícias de familiares desaparecidos após o rompimento de uma das barragem de rejeitos da mineradora Vale, o segundo acidente do tipo no estado em menos de 4 anos. Na lama estão quatro primos, sua ex-esposa — mãe de três dos seus filhos com idades entre 21 e 27 anos — e a irmã. Uma trabalhava como auxiliar de serviços gerais na Vale, a outra era servente. As duas estavam no refeitório construído abaixo da estrutura danificada e que foi varrido com tanta violência que partes de paredes, mesas e cadeiras só foram ser encontradas a 800 metros de distância do ponto onde ficavam.

A sexta que marcou sua vida e da qual não consegue se esquecer começou como outra qualquer. Desempregado desde meados de 2018, quando foi dispensado de uma transportadora terceirizada da Vale — fato que provavelmente salvou sua vida — Milton tinha saído de casa com o táxi que dirige para outra pessoa e do qual só fica com 30% da renda. Passava das 13h quando viu vizinhos e amigos correndo de um lado para o outro, todos desesperados com a notícia que dali a alguns minutos estamparia os jornais no mundo todo: a barragem na mina Córrego do Feijão tinha rompido.

"Eu morei 40 anos no Córrego do Feijão, só recentemente me mudei para a cidade de Brumadinho mesmo. No início a gente não imaginava a gravidade [do acidente], né? A ficha foi caindo aos poucos, mas até agora não caiu totalmente", diz, sobrancelhas caídas e expressão cansada de quem, do dia pra noite, se viu responsável por cuidar dos filhos e de mais oito parentes que agora dividem-se pela pequena casa de 40 m² comprada a prestações há poucos meses.

Passados tantos dias desde o rompimento da barragem, Milton desvia o olhar quando admite: só reza para que as centenas de bombeiros, oficiais do exército do Brasil e de Israel e os vizinhos que se embrenham pela mata como voluntários "encontrem algo dos parentes que possa enterrar". Sem desanimar, os bombeiros ainda buscam por sobreviventes, mas conforme o dia avança, admitem exaustos uns para os outros ser difícil achar alguém vivo.

A história de Milton ilustra o clima geral em Brumadinho. Vários estabelecimentos estão fechados enquanto seus proprietários esperam por notícias — boas ou ruins — que nunca chegam. Não há rua em que pelo menos uma família não espere angustiada por novidades de parentes desaparecidos. Mais que números, são pais, irmãos, são filhos que jazem na lama enquanto velas e grupos de oração por eles intercedem em cada pequena igreja, em cada pequeno memorial espalhado por praças e esquinas da cidade tingida do laranja empoeirado de sua extensa zona rural, por onde circulam carros de reportagem, viaturas de polícia e comboios com militares. As preces, que nos primeiros dias clamavam pela intercessão divina em prol de possíveis sobreviventes, agora residem nos pedidos de aceitação e conforto para a dor da população.

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Mas há quem não se resigne. Pai de sete filhos, Mário César Costa — conhecido na cidade como Mário Pururuca em referência ao lanche que vende no centro da cidade há mais de 34 anos — espera por novidades de um em específico: o mecânico de veículos da Vale Alexis Costa, 39 anos, casado e pai de uma menina de quatro anos. Perto dos outros filhos, se recusa a usar verbos no passado: Alexis "era", Alexis "foi" são expressões que não permite entrar no seu vocabulário. Ele almoçava com a família quando o dono do restaurante onde estava pediu atenção dos clientes para dar a notícia do acidente. Somadas as chamadas feitas por todos os membros da família, diz ter ligado quase mil vezes para o celular do filho, sempre para ouvir a chamada ser desviada para a caixa postal. Mas não desiste.

"Eu não posso desabar, eu preciso ser o sustentáculo (sic), queira sim, queira não. Por que o impossível não pode acontecer? O que é o impossível? No bairro que eu moro aqui nós fomos vítimas de vários alagamentos, já chegou a cobrir minha casa a ponto de ficar só o telhado de fora. Então essa situação dramática que já vivemos tantas vezes foi fortalecendo a gente", conta, firme.

Mas é só quando todos os filhos saem de casa, em mais uma via crucis pelos vários postos de informações instalados na cidade é que Mário Pururuca deixa cair a máscara de aparente força. Chora, primeiro timidamente e depois sem esconder a tristeza. Diz ser a primeira vez que se permite chorar desde o acidente e aos poucos, parece aceitar as chances remotas de ver Alexis com vida. 

"Enquanto você não tem um último 'visual' [do corpo], eu só consigo lembrar do último dia que eu o vi no supermercado, ele brincando de esconder de mim esperando eu perguntar por ele (…). Mas é muito difícil e a cada boato de gente que viu ele correr pro mato, que viu ele subir o morro e escapar na hora do acidente, a gente fica pensando se tem chance mesmo ou se a gente começa a aceitar", diz, com a fala entrecortada por lágrimas.

No cemitério, um índio missionário responsável pelo último adeus

Natural de uma tribo Tupi Guarani no coração da selva amazônica, o indígena Wellington de Souza Maia deixou a floresta para falar de Jesus. Estudando religião depois de contato com padres que visitavam a aldeia, ele abandonou seu povo e suas raízes para trás para evangelizar pelo país até fincar bases em Brumadinho onde, depois de alguns meses desempregado, foi conseguir emprego como coveiro. Já se passaram três anos desde quando pisou no cemitério Parque das Rosas pela primeira vez.

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Em uma semana típica, "Índio", como é conhecido pelos colegas de trabalho e vizinhos, abre no máximo 5 covas. O grosso do trabalho se resume a fazer a manutenção do local, para onde são levados os falecidos mais carentes de Brumadinho, aqueles que não possuem jazigos nos cemitérios mais tradicionais da cidade. Na sexta-feira da tragédia, abriu 33. No dia 29, data em que conversou com a Reportagem da Sputnik Brasil, já eram 98. A jornada diária, que usualmente vai das 7h às 16h incluídas as horas de almoço têm, desde então, começado às 6h e cortado a noite. A cada novo sepultamento, um misto de sensações.

"Só na minha rua são oito desaparecidos, gente que eu via todos os dias antes de trabalhar, cumprimentava, convivia. É uma decepção muito grande [ver isso] porque a gente pensa em multiplicar, não diminuir", admite, consternado. Ele ainda não enterrou nenhum vizinho e confessa não ter se preparado para o momento. "Vai ser chocante, eu não consigo nem pensar no efeito [no psicológico] ainda".

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Moradoras de Brumadinho se reúnem na entrada da cidade em celebração pela memória dos mortos no rompimento da barragem no Córrego do Feijão.
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Moradora de Brumadinho é vista rezando por mortos e desaparecidos pelo rompimento da barragem de rejeitos da Vale.
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Uma criança é vista acendendo uma vela no letreiro de Brumadinho, local que se converteu em memorial em homenagem aos mortos pelo rompimento de barragem da Vale.
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Família é vista em foto colocada sob uma vela no memorial criado por moradores na entrada de Brumadinho, MG.
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Alexis Costa, funcionário desaparecido da Vale em Brumadinho, é visto em uma foto com a irmã.
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No detalhe, o capacete coberto de lama de uma oficial dos Bombeiros que trata na busca por corpos em Brumadinho, MG.
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Voluntários auxiliam oficial do Corpo de Bombeiros durante trabalhos de busca por corpos em Brumadinho, Minas Gerais.
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Coroas de flores são vistas ao lado de covas abertas no cemitério Parque das Rosas, em Brumadinho. Local se preparou para receber 90 corpos pela tragédia envolvendo o rompimento de barragem de rejeitos da Vale.

Até lá, Wellington vai se apegando à fé, a mesma que o motivou a cruzar o país inteiro e chegar a Minas Gerais. Perguntado se o episódio abala a crença dele em um deus, o índio diz que só o fez reforçar. "A gente vê os sepultamentos e fica angustiado pelas famílias, mas tenho a certeza do arrebatamento e que vou encontrar todos eles em breve é maior", diz, não sem um sorriso em resposta a um dos 90 padres da Arquidiocese em Belo Horizonte, no dia posicionado no cemitério para oferecer conforto aos que poderiam chegar.

Wellington, porém, tem evitado o contato próximo com os conhecidos com familiares desaparecidos. Sabe que sua profissão é um constante lembrete sobre a inevitabilidade da morte e diz preferir "respeitar o espaço deles".

Revolta com a Vale

Enquanto aumenta a contagem de mortos e flutua a de desaparecidos, além da dor, outro sentimento une os habitantes de Brumadinho: revolta. Quando se menciona a Vale — que não faz muito tempo propôs aos moradores do Córrego do Feijão asfaltar a via de terra que liga a comunidade ao distrito de Casa Branca em troca do apoio local pela construção de mais uma barragem que substituiria a estrutura que viria a ceder —, ouve-se com frequência "irresponsabilidade", "negligência", "raiva", "desilusão". "Ódio".

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Diante do filho possivelmente falecido e da esposa de Alexis (que além do marido, também perdeu 6 parentes paternos), Mário Pururuca se adianta em pedir desculpas pelo termo e confessa preferir ver os responsáveis pela tragédia não presos, mas "no inferno, porque no céu não tem lugar pra eles".

"A pior dor é a dor da incerteza e não tem remédio pra isso. Eu fico me perguntando 'onde está meu filho'? Tá na lama da ganância e do despreparo dos dirigentes da empresa. Aquilo [o rompimento] foi uma coisa premeditada, a catástrofe estava escrita e desenhada (…). Cinco [engenheiros] presos foram poucos, tem que pegar essa corja. Se eles tinham consciência que poderia acontecer e se deixaram comprar por laudos falsos, a preço de miséria de R$10 mil ceifaram 300 vidas. Tem que apodrecer e não falo por revolta de momento não, tô falando como cidadão brasileiro e brumadinense", ressente-se.

Já Milton ainda se vê às voltas sobre o que fazer de agora pra frente. Ele afirma ter sido forçado a conversar com oito funcionários da mineradora antes de conseguir dois colchões de solteiro que permitissem aos parentes desabrigados — sobretudo as sobrinhas, agora possivelmente órfãs — dormirem na casa dele. Passado o choque inicial da tragédia, o taxista espera que a Vale nunca mais volte a operar no município e prenuncia: "isso é algo que Brumadinho nunca mais vai esquecer, daqui a 30, 40 anos vão falar do que fez a Vale para os filhos e netos" dos que ficaram.

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