Conheça o soldado português que 'vale milhões'

Tinha pouco mais de um metro e meio de altura, o suficiente para armazenar a coragem que a Batalha de La Lys exigiu. Há cem anos, Aníbal Augusto de Milhais enfrentou sozinho um ataque da Alemanha, dando cobertura para que os colegas escapassem, e sobreviveu para se tornar o Soldado Milhões.
Sputnik

Nesta quinta-feira (12), o filme que fala sobre o feito e a vida do herói português da Primeira Guerra Mundial estreia nos cinemas nacionais.

No dia 9 de abril de 1918, os soldados da 2ª Divisão do Corpo Expedicionário Português da frente em La Lys, parte francesa de Flandres, aguardavam para ser evacuados para a retaguarda. "Parte do armamento mais pesado e das munições já tinha sido enviado", conta António Paulo Duarte, investigador do Instituto da Defesa Nacional e investigador integrado do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. No entanto, o que ocorreu foi um massacre. A tropa da Alemanha avançou ferozmente. "O Corpo Expedicionário Português foi esmagado nessa batalha, tendo perdido cerca de 7.500 soldados e oficiais entre prisioneiros, mortos e feridos, numa força que, na altura, tinha pouco mais de 20.000 soldados", explica o historiador.

Cartaz do filme Soldado Milhões
Nasce o Soldado Milhões

Em meio ao ataque, Aníbal Augusto de Milhais foi contra a ordem de recuo dos superiores, segurou a posição dentro de uma trincheira e combateu os alemães sozinho para que os colegas escapassem. O soldado passou dias perambulando até conseguir reencontrar o que restara do pelotão. A incredulidade perante a sobrevivência de Aníbal fez o comandante soltar a frase que oficializou o soldado como herói: "tu és Milhais, mas vales milhões!"

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O feito do Soldado Milhões chega ao cinema depois de muita pesquisa. "O processo de reconstrução envolve pesquisa histórica, visual, gráfica, para saber desde as condições de uma trincheira ao tipo de fardas", conta Gonçalo Galvão Teles, um dos diretores do filme, que enfrentou um desafio pessoal. "Para mim, foi uma descoberta. Eu não conhecia a história do soldado. Li o projeto, achei que era um desafio aliciante por ser fora da minha zona de conforto, e da zona de conforto do cinema português, e achei que era um desafio que valia abraçar", diz o diretor.

O filme foi todo rodado em Portugal em junho do ano passado. A narrativa é construída em duas etapas: a primeira — durante a Grande Guerra, culminando com a Batalha de La Lys, a segunda — 25 anos depois, quando o Soldado Milhões é homenageado e a aldeia natal dele, Valongo, é oficialmente rebatizada como Valongo de Milhais.

"Nós queríamos fazer um filme de guerra, mas não queríamos que fosse um filme exclusivamente de ação, sem desenvolvimento de personagens, e uma das coisas que parecia interessante para isso era sentir não só o que o Soldado Milhões passou na guerra, mas também que efeito isso provocou na sua vida", explica Gonçalo Teles.

Pós-guerra

O Soldado Milhões nunca gostou das homenagens, embora elas tenham sido grandiosas. Além da mudança no nome da aldeia, Aníbal Milhais recebeu a mais alta condecoração militar portuguesa, a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.

O pós-guerra para o soldado foi de retomada da vida simples de agricultor no interior, enquanto a República Nova do então presidente Sidónio Pais vivia em constante tensão.

Cena do filme Soldado Milhões
"A derrota em La Lys foi lida de forma diversa por guerristas e antiguerristas. Os primeiros acusaram Sidónio Pais de ter traído o país e o exército, ao não ter assegurado o seu abastecimento conveniente e ter servido a Alemanha. Os segundos viram na derrota o erro de ter querido enviar para Flandres uma força militar que o país não tinha condições de sustentar, que exprimia o profundo desprezo dos radicais republicanos pelas reais condições do povo português, pobre, analfabeto e subalimentado", contextualiza o historiador António Paulo Duarte.

Cem anos depois

A Batalha de La Lys é considerada o pior desastre militar português do século XX e é "o maior luto nacional desde Alcácer Quibir, no norte da África, em 1578", declarou o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa durante a celebração do centenário do confronto, na última segunda-feira (9), no cemitério de Richebourg, na França, onde estão sepultados 1.800 soldados lusos.

Para o historiador António Paulo Duarte, pode-se até associar a tragédia em La Lys ao posicionamento neutro de Portugal na Segunda Guerra. "É muito provável que a experiência da beligerância da Primeira Guerra Mundial tenha estado na mente de Salazar — presidente na época — e dos responsáveis pela neutralidade na Segunda Guerra Mundial. Esta foi uma postura de prudência que contrastou inequivocamente com o voluntarismo radical dos guerristas beligerantes de 1914-1918", afirma o historiador.

Cena do filme Soldado Milhões
Na terça-feira passada (10), a cidade natal do Soldado Milhões assistiu à pré-estreia nacional do filme sobre o "herói que não queria ser herói", diz o diretor Gonçalo Galvão Teles. Aníbal manteve-se Milhais mesmo quando os descendentes passaram a adotar Milhões como sobrenome e pediu "uma escola para a minha aldeia" quando questionado sobre o que queria como prêmio ao voltar da guerra.

Para o presidente português, o Soldado Milhões é o "símbolo dos nossos melhores, aqui tombados em 9 de abril de 1918, a lutarem por Portugal, pela sua pátria, pela sua gente, pela sua terra"

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